terça-feira, 25 de setembro de 2012

História do balé: Do Renascimento aos Balés Russos



HISTÓRIA DO BALÉ: DO RENASCIMENTO AOS BALÉS RUSSOS

Este texto é uma compilação de fragmentos do livro A SELVAGEM DANÇA DO CORPO, de Marcus Vinicius Machado e Almeida (Curitiba: Ed CRV, 2011). Conta também fragmentos do livro de Rosana van Langendonck e Lenira Rengel: PEQUENA VIAGEM PELO MUNDO DA DANÇA. (São Paulo: Moderna, 2006).

            Com a queda da Igreja e a Revolução Científica e, a um só tempo, a queda da nobreza e o nascimento da burguesia, as sociedades, as culturas veem seu pensamento – a matriz dele, a sua filosofia – deslocando-se, definitivamente, do plano divino para o plano humanista, ou seja, confundindo pensamento com ciência, valorando a razão. É neste sentido que, diferentemente do passado, em que não se poderia compreender arte, religião e ciência de modo desvencilhado e tal como os pensamos atualmente, que a própria ciência e arte nascerão como campos bem definidos, ou seja, representantes de discursos, ideias diferentes e, sobretudo, opostas. Com a especialização dos fazeres humanos, isolando-os uns dos outros através de tecnologias distintas. O ato de dançar, antes, um fato jamais isolado, ou seja, jamais uma categoria (a saber, de arte), porque a fazer-se numa complexidade de ações que envolvem ritos religiosos, cantos sagrados, pinturas corporais.
Mesmo dentro da dança, também teríamos hoje um divisão dos saberes, criando hierarquias internas: o coreógrafo; o bailarino e intérprete; os preparadores e professores desta técnica, os maquiadores, os que produzem sapatilhas, os iluminadores, cenógrafos e figurinistas. No entanto, o que nos interessa, por ora, é a forte hierarquia (inclusive no que tange ao reconhecimento enquanto remuneração) entre dança (arte) e ciência; em outras palavras, entre nobreza e burguesia; e, mais à frente, com o Romantismo, entre os gêneros masculino e feminino – gerando conflitos, tensões provocadas por clichês, símbolos, e re-provocadoras deles próprios. Nas sociedades burguesas nascentes, tudo nasce e sobrevive de um valor e, portanto, é a nobreza que, tentando se valorar ainda neste empreendimento, revalorizará a dança dentro deste espírito. Um valor, a saber, distinto, privilegiado ao cultuado valor econômico burguês. Um valor divino. Um dom.
É mais fácil perceber que a ciência e não, a arte, tem um grande desenvolvimento neste período. É comum identificarmos a era moderna como o momento do desenvolvimento técnico e científico. A ciência passa a ser entendida como a atividade mais suprema do homem, e que sem dúvida trará mudanças econômicas, políticas, sociais, culturais e subjetivas de forma gigantesca, levando o homem ao topo de sua evolução. Mas se a ciência se inaugura na modernidade e tem uma legitimação meteórica, afirmamos que a arte, de forma não tão clara também segue este processo, muitas vezes se legitimando em patamares não tão consagrados, e principalmente criando a idéia de que seus criadores, privados de recursos financeiros, estão à margem da economia capitalista. O sociólogo Pierre Bourdieu nos mostra que há consagrações que não necessariamente se referem ao capital ou à propriedade privada, mas sim ao que ele denomina de capital simbólico. Com o capital simbólico, “a única acumulação legítima consiste em adquirir um nome, um nome conhecido e reconhecido”, diz Bourdieu. Deste modo, a arte, principalmente a erudita, mesmo que seus criadores vivam em privações econômicas e materiais, muitas vezes apresenta a ideia de que eles estão alheios às exigências da vida material e capitalista. E, na ideologia da era moderna, os campos da arte e da ciência como esferas quase que opostas da existência humana. Parte da legitimação da arte se dá porque esta se coloca como uma espécie de diferenciador, na mão contrária à ciência. Se a arte, ao longo da modernidade, e principalmente no século XIX, começa a configurar a ideia de que ela transporta o humano para um lado não-racional, imaginativo, sonhador, sensível, extraterreno e extemporâneo da existência, a ciência, num lado oposto, nos coloca em contato com a realidade, com a razão, com objetividade.
A antiga aristocracia, com o crescente enriquecimento da burguesia, era obrigada a partilhar terras e poderes com a nova classe ─ a burguesia. É claro que ambas vivem no novo sistema econômico. Elas igualmente se capitalizam, formando uma espécie de burguesia aristocrática e outra classe que denominamos de grande burguesia. Neste sentido, continuidades e descontinuidades se processam na burguesia aristocrática: alguns valores do antigo regime ainda cumprem seu papel de valoração simbólica, como a tradição de nomes de família e outras instituições, bem como um certo ideal do de requinte e nobreza ligado a estes. Quanto à arte, ela é totalmente capitalizada e dividida: há uma arte mais apropriada à grande burguesia — a arte mais popular, misto de divertimento e passatempo —, e outra mais adequada à elevada burguesia aristocrática ─ esta última, sim, é a arte legítima, a erudita, a clássica, a grande arte. Mas, por outro lado, a grande burguesia, em sua forma de legitimação, é vista como a classe que veio transformar o mundo, retirando da antiga aristocracia uma série de tradições e mitos que pareciam eternos, inabaláveis e de certa forma até mágicos, religiosos, mas que paralisavam os avanços do mundo em suas novas descobertas. Em contrapartida, em sua defesa consagradora, devido à longa ligação da realeza com a Igreja, a aristocracia, na forma de uma nova nobre burguesia, se afirma com dotes eternos, nobres e tradicionais de um passado longínquo, honroso e altamente refinado, espécie de presente dado a poucos homens abençoados com gosto e sensibilidade quase que celestiais. Aí, a aristocracia viria a trazer para os salões nobres a dança.
A burguesia aristocrática quer perpetuar o seu poder, que pouco a pouco se fragiliza, e a grande burguesia, devido à ascensão, passa a ser vista como um inimigo real e opositor à herança milenar. O que queremos dizer é que, se arte e ciência se consagram como campos que inauguram a modernidade, é porque elas estão como representantes de duas classes que se tensionam. E esta constituição não é devida apenas ao acúmulo de capital realizado pela grande burguesia, mas passa pelo poder dos sistemas simbólicos. A ideologia do artista romântico, privado de seus bens e de uma vida farta, que tanto alimentou os devaneios da própria arte, pode ser vista como uma metáfora da aristocracia decadente, pois, mesmo sem bens materiais abundantes, ainda guardava sua dignidade celestial por ser herdeira de uma super classe, na qual um título de nobreza está para além de qualquer privação. Este título nobre não pode ser comprado pelo burguês vulgar, sem tradição; é um direito, um dom consagrado por Deus, e é inalienável. Ser nobre confere nobreza, sensibilidade, distinção. A ideologia do artista antiburguês ganha sua expressão máxima no Romantismo, apesar de paradoxalmente esta ideologia também ser uma forma capitalista de consagração cultural de uma classe e de sua arte. Mesmo desprovida de capital, a pequena burguesia, que tentava viver da arte legitima, cria para si um estilo próprio de viver que se configurou na boemia própria do artista — “sua ociosidade é um trabalho e seu trabalho um repouso (...). [o artista] não segue leis. Ele as impõe”. Nesta direção, os artistas também estabelecem relações de desprezo com o grande burguês que está “escravizado às preocupações vulgares do negócio, e o povo, entregue ao embrutecimento das atividades produtivas”. Constituiu-se a ideologia da nobreza do grande artista, mesmo que miserável.
            A partir do século XV, com o intenso movimento de renovação em muitos âmbitos da vida social e cultural, chamado de Renascimento, as cortes se trans­formaram. Pela necessidade de ostentar suas riquezas, passaram a comemorar, com grandes festas, datas como nascimento, casamento, aniversário. A dança se desenvolve, particularmente em Florença, na Itália, no palácio da fa­mília Médici, onde, nas festas, eram apresentados espetáculos chamados de trionfi – triunfos, que simbolizavam riqueza e poder. Vários artistas eram convidados a colaborar na preparação desses espetáculos, entre eles Leonardo da Vinci. No ano de 1459, numa festa de casamento, foi apresentado o primeiro triunfo considerado balé. Em 1550, no carnaval de Veneza, foi encenado um dos triunfos mais suntuosos, no qual os dançarinos usavam máscaras bordadas com fios de ouro e pedras preciosas, leques de plumas e mantos de seda adamascada. Catarina de Médici se casa em 1548 com o Duque de Orléans, que se tornou Henri­que II na França, levando a idéia de espetáculo para a corte francesa. Nessa época, o espetáculo era uma mistura de canto, dança e poesia e constituía um passatempo para o rei e a corte. Os temas escolhidos eram mitológicos, em sua maioria. O rei participava interpretando uma divindade, que as pessoas da corte adoravam. O primeiro “balé da corte”, intitulado Le Ballet Comique de la Reine (O Balé Cômico da Rainha, foi apresentado em 1581. que durou seis ho­ras, com participação de carros alegóricos e efeitos cênicos.
A dança, nessa época, era quase exclusivamente masculina, mas, nesse balé, co­meçou a haver a participação de algumas damas da corte, formando o que se pode chamar de primeiro corpo de baile (grupo de bailarinos que realizam movimentos iguais) da história da dança. Iniciou-se, então, a formação de muitos desenhos ge­ométricos e direções no espaço na movimentação da dança, lançando-se os funda­mentos de uma nova forma de arte. Na passagem do século XVI para o XVII, a dança ainda continuava ligada à situa­ção de festa, porém, na Itália, ela já se desenvolve como forma autônoma de repre­sentação, onde não há mais espaço para poesias, deuses e heróis. Os personagens passam a ser plebeus vivendo paixões humanas, como retrata, por exemplo, o famo­so trio Pierrô, Arlequim e Colombina. No rastro italiano, a França vai, aos poucos, retirando do espetáculo as partes recitadas, substituindo-as pelo canto. No século XVII, o rei Luís XIV (1638-1715) proporciona um grande desenvolvimento para a dança. Exímio bailarino, criou vários personagens para si próprio, como deuses e heróis. Sua grande aparição foi como “Rei-Sol”, aos catorze anos de idade, no balé real A Noite. O personagem derrotava as trevas, usando um traje de plumas bran­cas. Luis XIV fundou a Academie Royale de la Danse. A chamada “comédia-balé” veio para substituir o “balé da corte”. A primeira tentativa do gênero foi Os Inoportunos. O esquema da comédia era entremeado e enriquecido com bailados.
A dança saiu dos salões palacianos e chegou aos palcos dos teatros, ainda como mera coadjuvante de alguns trechos de óperas. Jean Baptiste Poquelin, conhecido como Molière, criou temas para balé, pois in­cluía cenas de dança em todas as suas comédias. Nessa época, a dança pertencia ao teatro, ainda não era uma arte autônoma, e os intérpretes, que participavam dos espetáculos, eram ciganos, dançarinos e acrobatas que divertiam a multidão. Esses espetáculos com dança marcaram o início do seu desenvolvimento e de sua autonomia como arte. O movimento assinalou a presença de coreógrafos e teóricos de dança, que pas­saram a ensinar em academias abertas a alunos de todas as classes sociais. A exi­gência de uma técnica refinada para um profissional da dança fez com que Pierre Beauchamp (1636-1705), músico e coreógrafo da Academie Royale de la Musique et de la Danse, criasse as cinco posições básicas de pés para balé, posições de braços e de cabeça que as acompanham e são conhecidas até hoje.
No século XVIII, o balé nasce da união das acrobacias dos profissionais e da leveza e graça da dança das festas da aristocracia. Luís XIV criou uma companhia de dança, com vinte bailarinos, para a fa­mosa Ópera de Paris. A vestimenta dos bailarinos também está ligada ao desenvolvimento da técnica da dança. Os vestidos, compridos e pesados, impediam o virtuosismo de movimen­tos verticais. Os temas para balé começam a exigir a ilusão do vôo e, para isso, os cenógrafos utilizaram alavancas e roldanas para erguer os bailarinos. Marie-Anne Cupis de Camargo (1710-1770), La Camargo, grande bailarina da época, foi a primeira a ser erguida por máquinas e enriqueceu a dança com mo­vimentos verticais. Encurtou a saia na altura dos joelhos para facilitar sua elevação e os movimentos de bateria dos pés, que antes eram executados somente pelos homens. Contemporânea de La Camargo, Marie Sallé (1707-1756) procurou usar roupas mais leves, como as túnicas gregas, em um bailado chamado Pigmaleão, mas esse tipo de vestimenta só ganhou popularidade duzentos anos mais tarde, com a mo­derna Isadora Duncan.
A rivalidade entre La Camargo e Sallé era marcada por seus estilos diferentes de dançar. Enquanto Sallé se apresentava com uma dança solene, mais expressiva e dramática, La Camargo era mais ágil e leve, realizando saltos e passos rápidos, criando uma forma mais acrobática na dança. A luta contra as saias pesadas e a busca de liberdade dos movimentos continua até depois da Revolução Francesa (1789), quando o costureiro da Ópera de Paris, Maillot, criou a malha, dando ao bailarino maior liberdade e mobilidade. Enquanto isso, na Rússia, o czar Pedro, o Grande (1672-1725), fundou a Escola Imperial Russa, no Teatro Imperial Mariinski, hoje Kirov, berço de uma tradição que fará a glória do balé russo.
Também no século XVIII, Jean-Georges Noverre (1727-1810) publica as famosas Lettres sur la Danse (Cartas sobre a Dança), um manifesto válido até hoje, no qual é defendida uma dan­ça espontânea, com roupas leves e rostos expressivos, buscando exprimir idéias ou paixões. Idealizou uma nova forma de dança, que preconiza o balé de ação, que se constitui numa obra coreográfica baseada em uma história dramática. Contribuiu, também, para que a dança fosse definitivamente para os teatros. No século XIX, outro teórico, François Delsarte (1811-1871), cantor francês, teria abandandonado sua profissão quando sua voz começou a falhar. Seu interesse se voltou para os estudos da relação entre o gesto e a voz. A partir da observação das pessoas nas ruas, nos parques, nos hospi­tais, construiu uma teoria codificada das relações entre o gesto e a emoção. Para ele, as emoções são transmitidas principalmente pelo tronco, uma das ca­racterísticas da dança moderna, diferente da dança clássica, onde o rosto e as mãos são utilizados para exprimir sentimentos. As pesquisas de Delsarte influenciaram diretamente os trabalhos dos dançarinos modernos, como Isadora Duncan, Ruth St. Denis e Ted Shawn. Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950), músico suíço cuja pesquisa parte de uma re­flexão sobre o ensino da música. Como músico, ele constatou que, para se aprender música, ficaria mais fácil se o corpo se integrasse aos movimentos rítmicos. Desenvolveu um método pedagógico que consiste em decompor o ritmo e dar uma interpretação ao movimento, instaurando uma relação estreita de dependên­cia entre o movimento e a música. Seu trabalho contribuiu principalmente para o estabelecimento das fundações da dança moderna alemã.
Foi montado o balé  A Filha Mal Vigiada, seguindo fielmente as idéias de Noverre. Trata-se de um balé-pantomima, que usa muitos gestos e expressões faciais, com muita dramaticidade. Durante a Revolução Francesa, a dança, que era financiada pela corte francesa, parou de se desenvolver por causa de problemas econômicos. O centro de interesse passou a ser a Itália, onde o napolitano Salvatore Vigano (1769-1821) inspirou-se nos princípios de Noverre para criar seus balés. No ano de 1832, o italiano Felipe Taglioni (1777-1871), grande mestre de balé, apresentou um balé considerado o carro-chefe do romantismo, “A Sílfide”. A sílfide represen­tava um ser sobrenatural, na figura de uma jovem com asas envolta em névoa. As bailarinas vestiam saias brancas de tule, os chamados “tutu”, dando maior claridade e leveza à cena. A figura principal foi interpretada pela bailarina Marie Taglioni (1804-1884), filha de Felipe, primeira a usar sapatilhas de ponta inventadas por seu pai, incorporando-as naturalmente à sua dança.
A importância de Felipe Taglioni na história da dança deve-se, também, à re­novação do vestuário. Popularizou o tutu, o corpete rígido e as meias de malha, exatamente como se pode observar atualmente nas apresentações dos chamados “balés brancos”. A segunda estrela da dança romântica foi Fanny Elssler (1810-1884), que estreou na Ópera de Paris aos 24 anos. Bailarina de grande vivacidade e muito sensual, con­trastava com o estilo leve de Marie Taglioni.  A italiana Carlotta Grisi (1819-1899), outra grande bailarina desse período, fez seus primeiros estudos no Teatro Scala de Milão dirigida por Carlo Blasis. Carlo Blasis fundou a Academia de Dança de Milão. O poeta e crítico da Ópera de Paris, Théophile Gautier (1811-1872), criou, especialmente para Carlotta Grisi, o balé Giselle, obra considerada o grande exem­plo de balé romântico. A dança é narrativa e identifica-se com a ação, o que agra­dou ao público da época.
Contudo, temos que ampliar a maneira como, de um modo geral, o Romantismo é entendido. Para além de pensá-lo como um movimento que procurou amores impossíveis, o bucolismo, a singeleza campestre, queremos afirmar a faceta do Romantismo como um movimento de crise e de crítica contra certa subjetividade, política, ética, estética ocidental que vinham se desenhando à medida que o capitalismo se estruturava. O Romantismo pode ser colocado como corrente que tem uma profunda crítica “ético-social ou cultural direcionada ao capitalismo”, além de buscar uma saída das mazelas sociais deste sistema através da “nostalgia das sociedades pré-capitalistas”. O projeto Romântico, então, não deve ser ingenuamente visto apenas como novas formas mais livres e expressivas de realizar obras de arte movidas pela emoção intensa. Mas foi uma nova forma de entender o mundo e uma tentativa de dar novos significados para a vida. O projeto Romântico não deve ser ingenuamente visto apenas como novas formas mais livres e expressivas de realizar obras de arte movidas pela emoção intensa. Mas foi uma nova forma de entender o mundo e uma tentativa de dar novos significados para a vida, que atingiu diversos campos, dentre eles a política, a economia, a filosofia, a medicina, a ciência e as artes. Teorias constituídas no século XIX têm a forte influência dos ideais do Romantismo, como o Marxismo e a Psicanálise, por exemplo. O mais interessante é notar que há pensamentos românticos que até hoje se configuram no cotidiano, e os naturalizamos como se fossem formas de funcionamento universais. Como já mencionamos, a ideia de que a arte expressa um mundo interior é um clichê de origem romântica. E será a partir de Rousseau, Whitman e Nietzsche que se desdobrarão, aqui, as análises do Romantismo e suas influências para pensar a arte da dança e o corpo.
O que mais nos interessa aqui é o Nietzsche jovem, o Nietzsche de O nascimento da tragédia (2003), onde apresenta um conhecimento aprofundado sobre a Grécia. Mas a Grécia nietzscheana não é apenas a Grécia das belas formas e das proporções perfeitas, presentes nas obras de arte que Aristóteles já havia analisando em sua poética, e que tinha em Apolo o ordenador dessas formas divinas. Nietzsche quer buscar na Grécia um outro princípio, segundo ele há muito esquecido; para tanto introduz Dioniso para o entendimento pleno das tragédias gregas. É através do ressurgimento de Dioniso e do seu coro, juntamente com Apolo, que uma nova perspectiva de arte surgirá, tirando-a daquele patamar inferior onde segundo Nietzsche, se encontrava. Duncan não fará referência direta a esta obra, mas seu projeto de dança está intimamente ligado a um resgate de Dioniso e do coro grego, necessário para o restabelecimento da autêntica dança. Diversos trechos de seu livro e outros textos corroboram essa idéia. Mas por que este sonho do renascimento grego foi tão inspirador? Voltemos ao entendimento do movimento romântico para responder esta questão. O Romantismo foi um movimento artístico, filosófico e cultural que se expandiu por toda a Europa e foi além-mar, chegando às Américas e a outros continentes. Contudo, a cultura alemã foi uma das grandes responsáveis pelos principais ideais românticos. Os alemães são os primeiros a usar a palavra romântica, ligando este termo inicialmente aos pensamentos e poéticas de Goethe, Schiller, Schelling e outros. Uma das teses sobre o Romantismo o visualiza como uma tentativa da cultura germânica se legitimar perante a cultura latina. A Alemanha no século XIX apresentava uma profunda desigualdade econômica e cultural com relação aos países do Mediterrâneo, principalmente Itália e França. E havia um conflito entre a cultura latina (o humanismo renascentista) e a cultura alemã (o protestantismo nórdico). Essa cisão do antigo e unificado mundo medieval indica que o Renascimento germânico não se processou no mesmo tempo nem da mesma forma.        A reforma adiou [o Renascimento germânico] ao século XVIII. A forte influência protestante, além de fatores econômicos e políticos como a Guerra dos Trinta Anos, a dificuldade de centralização e controle do governo devido a grandes diversidades sociais e geográficas produziu na Alemanha no século XVII um sentimento de inferioridade em relação aos latinos. Tanto a burguesia como a aristocracia germânicas tinham condição econômica inferior à dos seus vizinhos franceses. Por isso estas duas classes na Alemanha se empenharam em uma aliança para um projeto de valorização da própria cultura germânica.
Se a cultura renascentista latina buscava na razão, na poética aristotélica, na ciência, a base de sua cultura, o protestantismo dava à Alemanha o desejo de experiências sobrenaturais: a fé revela através de segredos internos, que se contrapõem aos conhecimentos de um cristianismo latino que se racionalizava. Tentando superar este sentimento de inferioridade, a Alemanha inicia, principalmente a partir do século XVII, um projeto de valorização de sua cultural. Temos como figura principal, iniciador deste projeto Winckelmann. Se de algum modo o Mediterrâneo era o modelo a ser seguido pelo resto da Europa, devido a sua tradição ter se fixado nos antigos modelos gregos, Winckelmann toma outro rumo. A partir de então os latinos, principalmente franceses e italianos, são acusados de que eles não conseguiram verdadeiramente, no Renascimento, retornar a uma Grécia original, exemplo de modelo máximo da cultura. A tese de Winckelmann é que para retornar aos gregos não deveríamos ter como modelo a cultura romana como fizeram os latinos, mas ir verdadeiramente nos gregos autênticos. Pois os romanos nada mais são do que copiadores.
Como vimos, a forma de reação ao capitalismo comum no Romantismo é visualizar que algo mais original e intenso foi esquecido, recalcado ou adormecido, e é preciso se ligar novamente a este fator vital. Para Nietzsche, o princípio dionisíaco foi esquecido e na arte temos o seu resgate. Em Freud há as idéias de desejos recalcados que devem ser descobertos e incorporados ao eu. Para Rousseau, os povos primitivos representam esta esperança; para os poetas românticos, as sociedades pré-capitalistas. Uma revolução, uma mudança de sentido é esperada, seja para um retorno a um mundo distante ou antigo, seja para a criação de uma nova sociedade, como deseja Marx. É claro que a noção de corpo natural, apresentado pelos românticos e por Isadora, já traz necessariamente, como um opositor, a noção de corpo artificial que, pelos pensamentos do Romantismo, pode significar um corpo alienado, mecanizado, aprisionado. O termo artificial, nesta vertente, ganha uma dimensão deletéria para o corpo. O uso alienado, mecanizado do corpo, se o artificializa (lhe rouba da natureza), por outro lado, podemos entender o corpo em arte como a transformação da própria natureza, a desidealização dela: o artificial num sentido positivo. No sentido de ficcional, inventivo. Há uma premissa básica que vimos nos românticos, que é a capacidade criadora da natureza, como Duncan tão bem nos mostrou. Mas, ao pensar o absoluto na natureza, a força criadora é enfraquecida, pois aquilo que avaliamos como artificial decorre de uma prática judicativa e hierárquica. Acreditamos que a introdução do termo artificial e a eliminação da lógica opositora entre estes termos podem ser necessárias para intensificar a criação. Isso acontecerá com os russos.
Afirmamos anteriormente que a dança acadêmica não conseguiu penetrar como categoria de arte no Ocidente. Na França, é claro, ao lado da Itália, o balé havia conquistado grande repercussão e desenvolvimento técnico. A origem do balé é italiana, mas na corte de Luis XIV e com os balés românticos “La Sylphide” e “Giselle” a dança se aproxima de uma categoria de arte, mas, em nossa visão, isto não foi suficiente para romper as barreiras hierárquicas do campo das artes. E, mesmo chegando a ganhar prestígio na França, ocorreu um grande declínio desta forma de espetáculo no final do século XIX. Para dar uma rápida idéia desta decadência do balé francês, quando “Coppélia” foi estreado, em 1870, não havia mais homens dançando. Os papéis masculinos eram feitos apenas por bailarinas, e Franz, o protagonista principal, foi apresentado por Eugenia Fiocre. Mesmo, contando com Léo Delibes, um compositor com certo prestígio na história da música devido à sua ópera “Lakemé”, o balé declinava em qualidade. Os cenários eram de papelão, a formação das bailarinas não tinha mais alta qualidade.
Em contrapartida, na Rússia, o balé ainda permanecia sob a tutela da aristocracia russa, e tinha se tornado uma das manifestações do poder dos Czares, à moda de Luis XIV. O balé imperial russo conservava certo prestígio, e principalmente um excelente nível técnico. Desde o século XVIII, a Rússia, com seu desejo de se afrancesar, importara muitos mestres franceses e italianos de balé para o teatro imperial, e em 1735 já havia uma escola estadual de dança (CANTON, 1994). Uma certa preocupação pedagógica levou os russos a sistematizarem mais tarde as formas básicas do ensino desta técnica corporal. E um outro importante elemento de análise é que na Escola Imperial de Bailados do Teatro Marinsky, cada vez mais, os homens ganhavam destaque, isto levando também à estruturação de uma técnica e passos específicos e altamente desenvolvidos para o naipe masculino. A questão do gênero aqui é fundamental para entender o reconhecimento da dança, pois, numa sociedade falocrática, os papéis ocupados pelos homens se tornam vitais para o prestígio de determinada atividade. Se na Rússia a consagração do bailarino elevava a própria condição do balé, na França a extinção dos bailarinos era um dos elementos que fazia o balé remar na contramão de sua valorização.
Muitas pistas nos levam a crer que talvez na Rússia, principalmente em São Petersburgo, a situação da dança tinha características bem singulares e diferentes das apresentadas na França. Neste país, o poder tomado pela burguesia a partir da Revolução Francesa faz com que esta forma de espetáculo se torne privado, na Ópera de Paris, e não mais tutelada pela aristocracia. Sabe-se que, de certa forma, eram os cavalheiros que financiavam os espetáculos, e também mantinham relações amorosas com suas bailarinas protegidas. “‘A exibição de pernas’ do balé atraía homens ricos, que adoçavam os olhos e se apaixonavam pelas belas bailarinas, resistindo aos castigos do desprezo e suplicando as recompensas da intimidade.
Na Escola Imperial de Dança do Teatro Mariinski, em São Petersburgo, grandes mes­tres, como o francês Marius Petipa (1818-1910) e o italiano Enrico Cecchetti (1850-1928), encontraram um campo fértil para seus ensinamentos. A união do estilo nobre francês ao forte virtuosismo italiano deu origem ao méto­do russo, mais vital e adequado ao temperamento e ao físico dos bailarinos russos. Na década de 1890, Petipa montou três grandes balés sob a partitura de Piotr Ilyi­ch Tchaikowsky (1840-1893), que são remontados e apresentados até hoje: A Bela Adormecida no Bosque (1890); O Quebra-Nozes (1892) e O Lago dos Cisnes (1895).
Notamos então que as questões de gênero e corpo são bastante interligadas. As artes do corpo, principalmente após a Revolução Francesa, se tornam, em alguns países, uma espécie de espetáculo degradado da elite burguesa (HANNA, 1999). Com o desprestígio do balé, os homens saem de cena e o universo feminino fica livre para as bailarinas atuarem. Se há uma história da atividade humana repleta de nomes femininos, e legitimada de forma menor, esta é a história da dança. Porém, como Bourdieu (2005) nos fala, a dominação masculina sobre a mulher transforma o corpo do sexo frágil em um objeto de prazer; assim, a dança, atividade que se tornara surpreendentemente feminina na Europa ocidental, torna-se uma espécie de local dos prazeres sofisticados da carne. Assim, uma outra questão a ser mencionada é que, se Duncan, nos EUA, procuraria utilizar-se dos grandes clássicos da música para elevar o nível de suas coreografias, tentando fazer da dança uma arte legítima, os russos já haviam de certa forma retirado a “tradição” dos compositores de segunda classe de seus balés, pois há muito Tchaikovsky era um mestre de partituras para os balés do Teatro Marinsky. A música de Tchaikovsky, e também de Glazunov, em grande parte são conhecidas por seus balés, como “O lago dos cisnes”, “A bela adormecida”, “O quebra-nozes” e “Raymonda”, entre outros.
Retornando à temática da dança, reafirmamos que o balé tem sua origem e desenvolvimento na Itália e França, mas é somente em sua configuração russa que este espetáculo é elevado à categoria de arte. Nijinsky inicia sua carreira nesta esfera quase artística da dança, numa transição entre um tardio romantismo russo e a vanguarda artística européia. Desde cedo Nijinsky era aclamado como bailarino do Teatro Imperial, mas sua fama e a do próprio balé russo se ocidentalizam e se notabilizam através da companhia privada dos Balés Russos de Diaghilev. Este empresário das artes russas é considerado um dos nomes mais importantes quando se fala em revolução na dança. Graças a ele, uma série de pintores, músicos e bailarinos, todos de vanguarda, foram apresentados e aclamados na Europa. Diaghilev havia estudado música, entretanto, fora desencorajado pelo próprio Riminsky-Korsakov a seguir a vida de compositor, resolvendo então ingressar nas artes como empresário. De todas as suas façanhas neste ramo, entre organizações de exposições de arte russa dentro e fora deste país, óperas e edições de arte, a criação de seus balés foi a grande invenção européia do início do século XX, “estourando” de forma colossal desde sua primeira apresentação fora da Rússia. Agora, em vez de confeccionados em papelão, nos balés de Diaghilev os cenários eram produzidos por renomados artistas plásticos. O nível técnico dos bailarinos contava com um grupo de russos de primeira linha, produzidos pela Escola Imperial. Enquanto os franceses só apreciavam, em seus balés as frágeis bailarinas, agora homens e mulheres tinham papeis fundamentais numa técnica cheia de virtuosismo e poética como jamais se imaginara. Diaghilev tentou fazer do balé uma verdadeira gesamtkunstwerk, isto é, uma arte total, uma comunhão entre os artistas. Assim, bailarinos como Nijinsky, Ana Pavlova, Tamara Karasavia, Ida Rubstain dançavam com figurinos e cenários feitos por seus compatriotas, como Nicholas Roerich, Benois, Baskt, ao som das músicas dos melhores compositores russos, como Riminsky-Korsakov, Stravinsky, Borodin. Os Balés Russos eletrizaram Paris porque eram superiores ao balé francês. Agora a dança está agregada a verdadeiros artistas plásticos e músicos, afastando-se da mediocridade com que os bailarinos franceses realizavam este espetáculo. Mas, além deste elevado nível técnico e artístico, do nacionalismo e de um romantismo tardio, o exotismo foi talvez uma arma importantíssima nos bailados russos. Ainda pouco conhecida na Europa, a arte russa precisava atravessar as barreiras ocidentais. Ora, desde o século XIX poetas e escritores europeus viam nas terras ao oeste um lugar de inspiração para suas obras, o que gerou até o início do século XX um culto ao orientalismo (SAID, 1996). E a proximidade da Rússia com Oriente trouxe o fascínio de terras distantes nas apresentações de “Shérérazarde”, “Cleópatra”, “Danças Polovitsianas do Príncipe Igor”, “Petrouska” mostraram aquilo que os franceses desejavam ver: inovação, sensualidade e orientalismo. O mais original de Nijinsky é que nele não podemos apontar um pensamento, princípios ou método tão claro sobre dança. Hoje, o que se conhece de Nijinsky é sua capacidade altamente revolucionária revelada em cada coreografia. Há um corpo inédito, novo, em cada coreografia, que nos faz pensar em princípios e métodos diferentes. Em cada coreografia um método novo se estabelecia, produzindo uma nova dimensão corporal e existencial. Será então este o caminho da corporeidade? Compreender que em cada método, em cada técnica, em cada fazer de que o corpo toma posse, ele faz a si mesmo uma espécie de autogênese, de autopoiesis?



sábado, 22 de setembro de 2012

EPIDERMÁTICA

Caio Meira é desses poetas, vivos, contemporâneos, que escrevem com o tutano dos ossos, no nevrálgico do corpo, bem como na corporeidade dos verbos. Este "close to the bone" é um dos belos poemas que compõem seu livro Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer:


We are all sculptors and painters, and our material
 is our own flesh and blood and bones 
Thoureau




acordo e durmo debaixo da pele, sobre a crosta da terra, com camadas de cidade enterradas
movimento películas e superfícies entre outras películas e superfícies quando saio à rua, ou quando me encosto no parapeito desta janela que se despede da noite
acordo e durmo entre membranas impalpáveis, com enzimas, autoregulações e imponderáveis combustões
metabolizo rostos e teorias em meio à confusão de lembranças despropositadas, entre secreções sebáceas, tubos, alvéolos e histórias acumuladas
por vezes sinto esse torvelinho dentro da barriga, e não sei se é fome ou lembrança de fome, ou se são movimentos espontâneos da voracidade do vazio
nem sei que tipo de limite representa a pele, se me separa da madrugada ou me une a ela
se o frio que sinto nesse vidro me pertence ou sou eu que pertenço ao frio ou ao vidro, ou se o ponto em que tudo se entrelaça surge apenas para desaparecer 
sei apenas que sou permeável a esta manhã que desaba seus vermelhos por prédios e morros, por muros e árvores

AULA - LINGUAGEM



AULA – LINGUAGEM

(adaptado livremente de “Uma morada. linguagem e poesia em Heidegger”, tese de doutorado de Maria Ignez Moll, PUC-RIO, 2008).

A linguagem não é um instrumento disponível que possibilita a comunicação entre os homens, ou seja, a linguagem não se resume a um meio de expressão. Contudo, na era da técnica, a linguagem é vista exclusivamente como meio que serve à troca de informação. Por isso, o filósofo afirma que para pensar a linguagem é preciso penetrar na fala da linguagem e não na fala do homem. No entanto, o homem só pode dizer, ou melhor, mostrar e fazer aparecer aquilo que se mostra a ele. Por isso é que, antes de se tornar um dizer, a linguagem é na maior parte do tempo uma escuta, ato que só se torna possível quando o homem compreende a palavra, por exemplo, não apenas como signo que remete ao significado, mas como abrigo permanente, capaz de arrancar do esquecimento abissal o próprio existir das coisas. É este dizer e, ao mesmo tempo, a escuta deste imenso silêncio que permite ao homem tornar-se mortal, impedindo dessa maneira que ele permaneça congelado na idéia do animal racional.
            O filósofo Martin Heidegger pretende encontrar na linguagem uma abertura para aquilo que nos falta, pois, para ele, o homem precisa novamente aprender a morar na linguagem. Mas a linguagem aqui não se resume a um instrumento de expressão. Se assim fosse, estaria a serviço do pensamento e não o contrário. No entanto, o homem não concebe mais conceber a linguagem senão como instrumento disponível que possibilita a comunicação entre os homens, isto é, a linguagem é vista exclusivamente nos dias de hoje como MEIO.
            Para pensar a linguagem é preciso penetrar a fala da linguagem e não a fala do homem. Somente assim é possível alcançar o âmbito em que a linguagem nos confia de fato o seu modo de ser. O homem só pode realmente falar á medida que escuta. Na verdade, segundo o filósofo, o dizer dos mortais é essencialmente resposta. Torna-se imprescindível, portanto, que o homem escute a linguagem quando ela fala. A poesia, ou melhor, a experiência poética da(s) arte(s) lida de modo diverso e privilegiado com a linguagem, porque está a serviço dela, e não ao contrário, no caso do pensamento que – como razão – põe a linguagem a seu serviço (como seu objeto). O pensamento poético parece ser o único capaz de dar conta do que não é meramente representacional. Heidegger se refere, a todo tempo, à racionalidade imperante no mundo da técnica, pois a linguagem técnica, desenvolvida em sistemas de mensagens e sinais, oferece a mais violenta e perigosa agressão ao caráter próprio da linguagem. Com a dominação da técnica e com a transformação da linguagem em meio, é o mundo que se perde na sua concretude ou concriatividade, restando apenas dados que não passam de mera informação.
            A arte – a poesia – na é de maneira alguma algo que se insere na realidade e reclama por um resultado. É nela, na poesia, que os homens se reúnem sobre a base de sua existência. A palavra dá ser e isto quer dizer que a linguagem não é expressão nem representação, mas doação de ser. É nesta reflexão que Heidegger busca o sentido do ato de nomear, mas, para isto, precisa desce a uma dimensão mais profunda, em que a palavra possa mostrar toda a sua força doadora e não mais como signo, que remete a um significado. Mas como abrigo permanente, capaz de arrancar do esquecimento abissal o próprio existir das coisas.
            Segundo as concepções correntes, a linguagem é: 1) uma capacidade e uma atividade do homem; 2) o funcionamento dos órgãos da fala e da audição; 3) a expressão e a comunicação dos movimentos da alma guiados pelo pensamento; 4) uma representação do real ou do irreal. A definição corrente de linguagem se estabelece com Aristóteles. Para este, a linguagem é expressão de um interior, ou seja, da alma, por um exterior – a voz, a escrita. Desse modo, as palavras como sons vocais ou sinais escritos referem-se às afeições da alma. No entanto, falar é essencialmente dizer (podemos falar e não dizer nada). O que se quer dizer é o que se quer mostrar, é o que se quer, ou melhor, nos quer, a ponto de, em resposta, deixarmos que isto se diga por nós. Dizer é mostrar, levar uma coisa ao aparecer. O homem só pode assim, dizer, mostrar, fazer aparecer aquilo que se mostra a ele. É por isso que a linguagem não é um instrumento disponível que possibilita a comunicação entre os homens, embora seja esta a concepção corrente: a linguagem enquanto meio, troca de informação. A informação é exatamente este falar que nada diz, pois está sempre em função de, a remeter a, a apontar para a coisa que está necessariamente fora dela, porquanto nela só se representa. Quando a fala se torna informação, e nada mais. Para cada coisa, uma explicação. E nada mais.
            Contudo, como foi visto, falar é antes de tudo um dizer e mais precisamente um mostrar. A essência da poesia, em sentido mais amplo, é o dizer no sentido de tornar algo visível, ou seja, revelar algo. Sendo a linguagem poesia em sentido essencial, a possibilidade de aquela se transformar em instrumento e consequentemente em informação encontra-se na própria linguagem. Isso ocorre quando o dizer como mostrar é concebido de tal maneira que mostrar signifique somente dar sinais, que, por sua vez, são definidos de maneira unívoca. Um exemplo são os sinais em Morse. Ou os dígitos binários processados por um computador. A univocidade dos sinais se torna fundamental para o processamento da informação que serve à comunicação eficiente. Aí, a linguagem serve não apenas de comunicação entre homens, mas de comunicação entre computadores. Por isso, Heidegger afirma que a linguagem técnica, desenvolvida em sistemas de mensagem e sinais agride ao que, na linguagem, é poeticamente seu próprio. Pois aí não á existe mais fim a ser alcançado senão a manutenção do funcionamento de um sistema instrumental imposto pela vontade do sujeito. É precisamente aí que talvez o homem possa dar conta de tal esquecimento do que nas coisas não está dado, pronto, disponível, como objeto, objetivado, claro (sem sombras, sem silêncios, sem aberturas, sem porvir, sem futuro, sem vir a ser, sem deixar de ser), ou melhor, que talvez o homem possa dar conta da redução dos entes a um sistema totalmente organizado. A possibilidade de ir mais além ao se dar conta de tal esquecimento permite a colocação de uma pergunta capaz de abrir outros caminhos. Tal pergunta é um passo para trás, tal pergunta pretende percorrer caminhos inusitados. Esse passo para trás implica percorrer a história com que a questão do ser foi e é conduzida. A questão do ser está dizendo: a questão do que é, do que é real, do que pertence à realidade, à vigência do que há (e também do que não há, mas, como possibilidade, vigora: pode ser). Heidegger, assim, recoloca a tradição no horizonte dessa questão e mostra que a metafísica ocidental deixou o ser esquecido, isto é, só comemora o ente, o dado, o objeto, o posto – um real passível de ser delimitado, definido, organizado, sem mais caos, ruído, mudança, princípio permanente.
            Ao recolocar a questão do ser no horizonte da tradição, Heidegger vai aos poucos, também mudando seu pensamento – ele também não está dado no seu presente e, de repente, volta; não: é perguntando pelo que no seu presente é herança, memória, permanência de um pensar que não passou, persiste, que dialogando com o que recebe, recebeu, já é outro, abre-se à possibilidade de um futuro. De um futuro do passado. O seu (novo, o sempre novo) presente.         Enfim: Heidegger procura, retomando a tradição, buscar aquilo que o princípio da cultura, pensando o que estava em questão, mas não foi trazido ainda á palavra: deter-se no ainda impensado na palavra dos pensadores essenciais. Por exemplo, o logos, que aparece, primordialmente, em Heráclito. De acordo com Heidegger, o logos foi interpretado de muitas maneiras, mas, acima de tudo, como ratio, ou razão. No entanto, o homem sempre se esqueceu de pensar de onde provém a essência da razão. É do légein que depreendemos o logos. Légein diz de modo originariamente o que, em latim, se escreve como legere (que culminar no verbo “ler”): colher e apanhar. E, a toda colheita, pertence sempre um recolher que acolhe: daí se tem que o traço fundamento da colheita é o abrigar. Mostrar-se. O pôr ao abrigo, muito antes de ser a última etapa de uma colheita, a atravessa e a rege de uma ponta à outra, e, desse modo, constitui a sua essência. Logo, o falar da linguagem, que vige no légein, não se determina pela articulação de sons, e nem muito menos pela significação. A compreensão do verbo légein só pode ser atingida completamente quando o examinar associado ao verbo ouvir, ou seja, ao que se lhe doa, ao que acata, abriga, o que deixa estar junto de, re-unido. Um. Incorporado. Corpo.
            Se o dizer não se define pela articulação de sons, o ouvir não poderá constituir em se apreender o som. A escuta só se torna possível quando pertencemos ao apelo que nos traz a fala. Há toda diferença entre a simples captação do som e a ação de se pôr à escuta pelo simples fato de que o ouvir autêntico é, sobretudo, um recolhimento. Essas afirmações indicam que o logos é o recolhimento originário de uma colheita original a partir de uma postura inaugurar. Enfim: o abrigo, o dar casa, corpo a um isto que veio e vem a ser, deixá-lo ser propriamente, deixar que o ser seja, esteja. Faça: sentido. Ganhe cuidado. O verdadeiro ouvir, assim, não é ouvir outra pessoa, mas ouvir o que ela também ouve, ouvir o apelo que a levou á fala, o mesmo apelo que, nos deixando vir a se mostrar o que se mostra a ela, perfaz o um, o sentido, a força do que se quer dizer por nós (e não do que nós queremos, decidimos dizer, como se fôssemos os agentes do processo e a linguagem meio, a coisa, o objeto; e não nós o meio, pelo qual o ser é, ou seja, se presentifica, está na linguagem). Assim, a escuta autêntico é todo âmbito em que, se cuidando e nos cuidando, a linguagem nos per-facciona, nos re-une conosco na medida em que reunidos com tudo, a tudo; na medida em que, em tudo, nos vemos integral e, como tal, em diálogo distinto, distintos. Próprios.
            A representação atual da linguagem se encontra muito distante do que teriam intuído os pensadores originários ao se depararem com o logos. Mas o que acontece quando chega à linguagem o ser dos entes, os entes em seu ser, quando a diferença de ambos chega à linguagem como diferença? Para Heidegger, levar à linguagem é abrigar o ser na essência da linguagem. Por tudo isso, o dizer não é uma manifestação fonética de um conteúdo, mas sim fazer aparecer. Eclodir. Diz Gadamer: “o que há de propriamente misterioso na linguagem é o fato de ela deixar ver, ser tocado por, de modo que isto se apresente”. Todavia, este fazer aparecer nada mais é do que um desvelamento – tradução para a palavra grega aletheia: verdade. É neste sentido que fazer aparecer é o mesmo que deixar ser, pois em todo desvelar já existe sempre um velamento, ou seja, aquilo que se desencobre e que estava velado também é ao mesmo tempo preservado como o que é abrigado na medida em que retorna à palavra. Por isso, o dizer é: “ao mesmo tempo esse combate para conservar na presença o que em qualquer instante pode se retirar na ausência – ausência que, no entanto, não é o nada como nulidade, mas a reserva do ser”.
            A discussão tradicional sobre a linguagem ocorre no âmbito da metafísica (no modo de pensar ocidental dominante), isto é, toma-se sempre a linguagem como um objeto. Mas a linguagem não pode de modo algum ser considerada um objeto para o pensamento caso este queira realmente alcançar o que é próprio da linguagem. Tornou-se totalmente infrutífero para o pensamento falar sobre a linguagem. Aliás, o homem só pode fazê-lo porque parte sempre do princípio de que a linguagem é um instrumento de comunicação que ele possui.
            No intuito de romper com a concepção corrente, Heidegger substitui “O homem fala” por “a linguagem fala”. Daí se tem que o pensamento é que está a serviço da linguagem e não o contrário. Desse modo, o homem não pode ser o sujeito e nem o senhor da linguagem. Para pensá-la, é preciso penetrar na fala da linguagem, que homem ouve, e não na fala do homem, que ouve, sempre primeiramente, a possibilidade de ouvir e dizer. Chega-se aqui, mais uma vez, á questão da escuta, pois, se é a linguagem que fala, então homem só pode falar á medida que escuta a linguagem tanto no sentido da audição quanto no sentido da obediência, da pertença. Uma coisa é o conhecimento científico sobre a linguagem, outra é a experiência que fazemos com ela: “Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, seja com um ser humano, com um deus, significa que este algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma” (HEIDEGGER, A caminho da linguagem).  Fazer, aqui, não tem o sentido de produzir, mas, sim, de sofrer e receber, ou seja, fazer uma experiência com a linguagem significa deixar-se tocar propriamente pela linguagem. Na experiência com a linguagem é a própria linguagem que vem à linguagem. Nesse momento, toda vontade de conhecimento – de sistematização, de conceituação, de objetivação e, logo, de afastamento do que não pode esta fora, nem perto, mas ser o acontecimento propriamente vivido – deve ser abandonada. Enfim, a experiência da linguagem quer, aí, sempre dizer: entrega. A experiência, como acolhimento, não é conhecimento, não é fazer a coisa, uma coisa, um corpo à representação, ao cálculo, ao conceito; ter ou ser uma experiência é submeter-se ao que é. Mas, segundo Zarader, se submeter-se a vontade do conhecimento dá lugar ao cuidado de uma experiência, então a própria noção de essência se esvai ou pelo menos exige ser repensada numa perspectiva outra”. Como já foi dito anteriormente, não estamos no âmbito do conhecimento de um determinado objeto, mas, sim, no âmbito de uma experiência, portanto, só concebemos aquilo que a linguagem é quando penetramos no que o sinal de dois pontos entreabre – “A essência da linguagem: a linguagem da essência”. A essência, aí, sendo o ser – sendo o ser sendo, isto é, deixando ser, vindo ser, isto é, já não mais o que era e é, ou ainda não sido, ainda não, nada, abertura, aparece como o sujeito da linguagem. Não mais o homem. É como linguagem, que a essência se humaniza. A palavra essência não significa mais o que uma coisa é, mas o vigor daquilo que nos concerne. Quer dizer: ao invés de tentar em vão chegar à linguagem falando sobre ela, trata-se, sobretudo, de compreender que só é possível falar a partir da linguagem; só é possível ser humano a partir da linguagem, pois já nos encontramos desde sempre na linguagem, mais do que em nenhum outro lugar. Poderíamos dizer: pois já nos encontramos desde sempre no ser, sendo, nunca fora dele. Mas o ser se diz, se revela, o ser é: na ou como linguagem. A linguagem que, mais do que o dito, é a força do dizer, também diz: silêncio. O ser que não é se diz no que, na linguagem, também não é, deixa de ser, vem a ser silêncio.
            O caminho, então, que o homem precisa percorrer para pensar a linguagem não pode justamente conduzir senão para onde já estamos. Ser, linguagem e origem – nada disso está em outro lugar e, no entanto, a única tarefa do pensar é tentar chegar lá, quer dizer, aqui. Ao que nos é próprio.
            É óbvio que pensamos que a poesia é apenas uma modalidade particular da linguagem. Que a dança é uma modalidade particular da linguagem. Que a música é uma modalidade particular da linguagem – como se esta fosse instrumento, meio, para trabalhar as palavras, o corpo, o som, para dar forma às matérias. Na verdade, é o poético – como o deixar ser, o eclodir, a revelação propriamente, é o que torna possível a linguagem. Ou seja: é na dança que linguagem é linguagem. É na música que linguagem é linguagem. É no poema que linguagem é linguagem. Que o ser se mostra concretamente, porquanto tudo isso é o fenômeno, a experiência da criação.
            O pensamento de Heidegger constitui, neste sentido, uma ruptura radical com a estética, na medida em que põe a obra e não mais o sujeito, seja ele receptivo ou criativo, no centro da gravidade da arte. Para ele, o artista está na origem da obra, mas a obra está na origem do artista. Ambos – artista e obra estão na origem do que ganhou e ganha origem, do que doa ser, poiesis. Artista e obra são o que são porque e quando e enquanto na arte, no caminho de desencobrimento dessa doação. Por isso, a arte, sempre pensada, no entre obra e humanao de modo que nenhum dos dois dados, objetivados; de modo que sem objetos, sem sujeitos, a arte não se pense mais a partir dos entes, mas a partir do ser. Do que vem ser no encontro, com o encontro e só como o encontro – o diálogo: a escuta e o dizer. O homem diz a obra ao ouvir, ao ser chamado a uma arte. O homem ouve a obra ao dizer, por deixar que se diga a arte nela, nele.
Desse modo, e para terminar, a essência da linguagem não pode ser nada de linguístico. A essência da palavra, do dizer, do nomear não pode ser nada linguístico. Heidegger chama a linguagem de “casa do ser”, pretendendo dizer a essência da linguagem sem fornecer um conceito, pois, para o filósofo, não é possível definir a linguagem com um conceito. Mas isso não significa que não se possa pensá-la. Heidegger não tem em mente na formulação “casa do ser” o ser dos entes representado metafisicamente, a essa altura ele se refere ao vigor do ser, precisamente à dobra entre ser e ente. A formulação “casa do ser” não pode ser, então, uma fórmula (essa casa não pode ser uma fôrma, algo pronto, algo delimitado, construído). A casa é o lugar onde é possível habitar. A casa é uma morada onde nos demoramos. A casa é local de reunião de homem e ser, onde estes se encontram. Esta casa não é nada mais do que a linguagem. E a linguagem nada mais é, quando e como casa, o corpo. O corpo quando e como o ser (se) acionando. Por isso, para Heidegger, há uma grande diferença entre a palavra que é aceno (corpo!) e a palavra que é apenas signo (o que aponta para o corpo, sem sê-lo). Do mesmo modo, uma grande diferença entre o corpo que é palavra (dizer! Sentido!) e o corpo que é apenas signo (significante, superfície, de um significado, de um fundo, de uma ideia, de um conceito, necessariamente linguístico).

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

DANÇA: POÉTICA E METAFÍSICA



DANÇA: POÉTICA E METAFÍSICA

O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos veem com amor o que não é, tem ser.
Manoel de Barros.

AQUECIMENTO

As considerações a seguir não pretendem buscar e propor um novo ponto de vista para a arte, para a dança, para o corpo, para a realidade e, desse modo, uma nova conformação de toda sua dinâmica – inacabada e inacabável – a um conceito, a uma ideia, a uma fórmula, a um regimento. Ao partir das provocações do pensamento filosófico de Martin Heidegger (crítico, ele mesmo, da história da filosofia), este texto se ocupará, sim, de desconstruir a compreensão do real na relação sujeito-objeto, isto é, como visão-de-mundo, modo de ver. Trata-se do desafio de lançar-se (lançar a ver, o corpo, a arte) justamente no que, no e do real, não é visível, mas acontece. No que não é claro, não depende de clareza, esclarecimento, para ser. No que não nasce objetivo, diante de (para) um sujeito e, logo, apartado dele. Não podendo se pôr fora do que vem a ser, e deixa de ser, o chamado corpo compreenderá tudo isto que, por enquanto, é – o provisório limite do que veio (à luz!) e já foi. Outrossim, isto que, ausentando-se (já passado? ainda futuro? Desaparecido! Não aparecente!), dá propriamente o presente: se dá de presente. De tal maneira que presença coincida com o corpo enquanto tal: o por entre ausência(s).
Antes de vermos outro corpo, ao vermos outro, trazendo-o para nós, mediando-o, representando-o, nele já estamos, nele primeiramente viemos a ser o que somos, nele deixamos de de ser o que éramos. Somos, por excelência, no que, no outro, também não está dado: o outro será, também, só em nós. No encontro. O outro, assim, o que sempre será: nunca o que é. O outro do outro somos nós enquanto sua alteração, do mesmo modo que nós nada somos senão no instante e o instante de toda esta alteridade.
Como, então, pré-ver outra coisa, o outro da coisa, identificar a diferença, indiferenciá-la, idealizá-la, torná-la um igual? Como pré-ver uma vista de um ponto e um ponto de vista, se quem vê e se o visto não se pré-supõem, não estão dados a priori, nem a posteriori? O que os prima, priva, os posta? O que os supõe, os arruma, os suportar, os dá, os torna próprios, ou melhor, os re-tira, os abisma, os desarruma, os transpõe, os con-funde, os deixa propriamente in-suportáveis?
Ao aceitarmos um diálogo com o pensamento de Martin Heidegger, filósofo alemão do século XX, desejamos, enfim, morar no que se antecipa e possibilita a experiência de ver e de pensar. Na experiência da experiência. Na experiência de ser – anterior e ulterior a qualquer subjetivação, objetivação, razão – na qual se dará a arte. A dança. Falando não mais sobre o corpo, mas sempre no corpo, partindo do corpo, chegando a corpo, sempre sendo o corpo falando e falante, sempre sendo fala porque e enquanto incorporação, sempre sendo incorporação porque e enquanto abertura, esvaziamento, pensamento. Isto, o pensamento: o ser em dança. O pensamento dança! Heidegger compreenderá o pensar como tal re-velação do ser, da realidade, como o corpo em obra; como o corpo que se desvela no mesmo instante em que se vela, e que se vela no mesmo instante em que se desvela. O pensar como tal suspensão do ser. Desse modo, rogará o pensador que vida – corpo – não mais se reduza, se conforme a um ente. Se ele, suspenso, na tensão de ser e nada. Aí, a a arte não mais raciocinada, também entificada. Aí, ou melhor, aqui, a dança dança.

EXTENSÃO E FLEXÃO

No século XX, o pensamento de Martin Heidegger vem por em questão todo um Ocidente que, após seu desencantamento religioso, foi e ainda é dominado pela ciência e pela técnica. Tentando tudo disponibilizar para o homem, o pensamento tecnocientífico acabou e acaba por explorar e esgotar a natureza, a realidade (por reduzir o real a um dado, coisa dada, ou seja, particípio passado, partícipe do passado: sem futuro, sem chance de ser coisa por dar-se, jamais coisa-objeto, no e com o objetivo, sempre, a rigor, dos sujeitos). Se a ciência, assim, se pré-ocupa com o fundamento do aí-dado, com a medida – a ratio, a razão – de onde tudo parte e para onde tudo se direciona, a técnica constitui o meio consagrador de tal empreendimento: o operador das causas e dos efeitos; a sustentabilidade ou a garantia da eficácia e eficiência desta máquina do mundo. A técnica moderna, enfim, como o know how, a instrumentalidade, o método para que coisa dada chegue a uma dada coisa: ponte para a reprodução delas, para sua repetição, redundância, igualdade, igualação. Daí, a chamada coisificação do real na filosofia, uma vez que leis, modelos, suportes enquadram, conformam, dão forma, fôrma, delimitação, definição, ou seja, fim às possibilidades de ser, que dizem a realidade para aquém e para além das suas causas e finalidades.
Neste sentido, como parte também desse real limitado, de um todo obtido pela soma ou coesão de cada uma de suas partes (não fossem elas, antes de partes de, primeiramente cada uma que vem a ser e deixar de ser, isto é, que é no aberto, parte ou partícipe do nada, presenças do que era e será ausente, antes de ser para ou por causa de outra coisa maior, já nem mais coisa, porque acima de todas: pura, idealizada!), o homem passa também a coisa, a mais um objeto para o sujeito no qual se transformou. O homem, sujeito e objeto de si mesmo; o homem, então, a manipular, controlar, explorar, esquematizar, rotular, estereotipar o humano e tudo o mais que participe de sua sujeição, que se ofereça à sua razão, que caiba nela. Tudo perdido. Para a razão humana. Aí, a aposta, cega, na abstração, no colocar-se para fora ou acima do corpo, fora do que concretamente é con-fuso, e esclarecer-se, e entender que se pode chegar a uma luz isolando-a da sombra.
Desse modo, na prévia divisão do real em partes, ou melhor, em metades – como ideia e coisa, espírito e carne (platonismo), matéria e forma (aristotelismo) e suas derivações (significado e significado, essência e aparência, sujeito e predicado, fundo e superfície), o que está em questão, no pensamento do real, do corpo, da arte, da linguagem, é o esquecimento do ser. O esquecimento do nada como o que impede a predicação do real, do corpo, da arte. O que impede de pré-dizer tudo o que não se esgota no já-dado, no passado e, portanto, suplanta todo adjetivo. O que impede de tornar tudo o que seja um adjeto. Por exemplo: falamos em mundo sensível e mundo inteligível (pensamos logo pela contraposição adjetiva) sem, primeiramente, substantivamente, pensar o que no mundo é mundo. Que o substantivo é só no verbo, na ação, das ações: se o substantivo ou sujeito aciona, já foi acionado. O (vir a) ser é que substantiva, portanto, mas na lógica da gramática (que se fez a partir da gramática da Lógica), passou a mera verbo de ligação, de mediação para o sujeito chegar aos seus predicados e vice-versa (como se a ação pertencesse ao sujeito, antes de pertencer a tudo que, em ação, age, co-age, co-move, move). Quando se objetiva mundo, ele, portanto, supõe-se fora da ação do humano, fora do corpo – onde e quando o i-mundo (o caos) propriamente é (cosmo: limite: corpo: presença: linguagem). A razão inventa, assim, de um lado, o mundo subjetivo (o homem e o por debaixo das coisas, o subjacente) e, de outro, o mundo tal como o entendemos vulgarmente: o objetivo, o dos objetos, aquele já representado e no qual nos representamos.
Porquanto a experiência do nada não é ponto de vista, não cabe em teoria (não é possível ter um conceito do nada, ver o nada – nele sempre estamos, na abertura, no deslimite, na superação do limite, do ente, do mesmo modo que estamos sempre partindo do silêncio e chegando a ele), tal pensamento não é privilégio da filosofia; não é descoberta ou novidade teórica. Pelo contrário, a filosofia, desprivilegiando o nada na maior parte da História do Ocidente, acabou por desprivilegiar a experiência de seu pensamento, a qual é, a rigor, a poética: a do poético – na dança, na música, nas artes etc. O poético como a própria manifestação do divino (disto que, do nada, vem!). Não o sagrado, ainda, compreendido religiosamente, entitativamente: não se trata, pois, de substituir os fundamentos por outros. A razão por Deus. A ciência pela religião, se, ambas, obra de uma filosofia perdida de sua própria irmã ou mãe: a poesia, a experiência-força do que vem, se dá, se cria, nos cria e no faz criar.
Neste sentido, por exemplo, Guimarães Rosa, escritor brasileiro, não precisa pensar tudo isso na medida em que tenha lido Heidegger, por exemplo, mas porque, acatando o ser de toda humanidade, abrindo-se ao poético da própria vida, abrindo à vida, ele pensa – todos nós pensamos nisso, a partir disso, mesmo que não saibamos, e na medida em que não saber é outro modo de também dizer isso, ser dito (não dito!) por isso. No conto “O Espelho”, Rosa escreve: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. De tal modo fechado ao milagre (aqui, antes da acepção religiosa, o próprio vir a ser do antes não vigente, jamais visto, jamais pré-visto), o homem não pode mais simplesmente ser. Ele tão-somente será por causa de (outro ser, também dado, coisificado), ou a fim de (mais um ser, dado também). Ou para (para um ser prescrito). Resta-lhe viver (e de fazer arte) como tal cumprimento de porquês, finalidades, objetivos, causas.
Este, o adendo de Heidegger: antes de utensílios (para, porque...), nós somos. E é só na dignidade do que primeiramente está sendo, quer dizer, sendo livremente, anterior e ulterior a todos modos de justificar e de encaminhar a ação, de depender de outra, para agir (de determinar para onde algo ou alguém tem de ir e como tem de ir; qual o modo correto, adequado, verdadeiro de ir, para chegar) que podemos forjar toda utilidade, pragmática e funcionalidade. Segundo Heidegger, a base desse pensamento estaria em Aristóteles – na sua compreensão das coisas-utensílios, aplicada, posteriormente, às teorias da arte e também à filosofia e ciência da linguagem (Linguística, Semiótica, Semiologia). Cria, na correlação arte e utensílio, a pergunta: qual a utilidade da poesia, da dança, da música? E, quando para além de todo útil, e ajuizada inútil, a arte, ela se responde, é obrigada a responder uma questão, na verdade, nunca proveniente dela, proferida por ela.
A criança que, ainda não adestrada, simplesmente está sendo, ou seja, aberta a, aberta ao aberto, na experiência, por descobertas, não sossega: não pára quieta, sentada, numa cadeira. Pula. Faz arte: passa por debaixo, por entre os vãos. Brinca. Tira a cadeira do lugar, do seu lugar, ou função. Dá-lhe um novo lugar. Um espaço-tempo outro. Devolve, portanto, a cadeira à sua potência de ser: deixa que corpo-cadeira propriamente apareça, e que apareça como corpo-com, corpo-com-outro; deixa que o corpo-criança seja com-o-corpo-cadeira, antes de ambos condenados a uma ideia, fundamento. A cadeira, se serve de assento, só podemos usá-la, nela sentarmos, porque primeiramente ela é e, sendo, resguarda a potência do ser, mesmo que lhe prediquemos uma função: como corpo, cadeira, e criança, a criança da cadeira é possibilidade de vir a ser, deixar de ser, estar em arte. A criança, aí, muito arteira! Não à toa, cheio de infância, Alberto Caeiro, poeta (e um dos heterônimos de Fernando Pessoa, crítico da metafísica ocidental antes mesmo de Heidegger), escreveu: “As coisas não tem significação, tem existência!”; “O que nós vemos das coisas são as coisas. / Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida! (...)/ exige (...) uma aprendizagem do desaprender”. E em outro momento: “Criança desconhecida e suja brincando à minha porta / Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos. / Aprecio a tua presença só com os olhos”. Mas “não basta abrir a janela para ver os campos e o rio. / É preciso não ter filosofia nenhuma. / Com filosofia, não há árvores: há ideias apenas”. Quer dizer: não basta ir a um espetáculo de dança, para ver a dança, compreender a dança como e desde um ponto de vista, teoria, filosofia, razão, juízo. Enquanto perdurar na ideia, ou numa proposição, tudo deixa de ter existência concreta para redundar na objetivação e na subjetivação, no significado (fixo) ou na significação (subjetiva), ou seja, na escrita (lógica) do que não é escrita.
Na criança do pensar, no seu princípio, o sentido: o poético de todo corpo. Na infância de um poema, de uma escrita literária, o sentido – poético – como corpo e não no signo linguístico. O poético não é o sentido figurado (versus o sentido literal). Aí, mais uma vez, a noção de sentido pensado a partir de adjetivos: literal (o significado subjacente, ao pé da letra) e o figurado (o significado por alguém, o ressignificado pelo que está fora da letra). Aplicando tal raciocínio ao corpo, entendemos que não podemos ficar ao pé dele, confirar no que ele aparenta, porque, afinal, para além dele é que está o sentido – corpo é, dança é apenas metade do que falta: a ideia, o inteligível, o conceito. Desse modo, reitera-se o simbólico, o indicial, o icônico como a co-dependência de uma coisa a uma outra que, não estando nela, é necessária para regê-la e tê-la por completa. No entanto, corpo não é metade de. Toda metade, na sua relatividade, é que nunca deixa de ser um corpo. Daí que sentido e semântica não sejam a mesma coisa. No diálogo com o corpo, imediatamente mediamos (semantizamos! raciocinamos!), quando, por princípio, o imediato nunca é o mediato, o raciocínio, a sua divisão em fundo e forma, mas o que já fez corpo, já se apresentou no nosso, incorporou, comoveu, aconteceu, fez sentido! Desse modo, dança precisa fazer sentido e não, semântica. Parafraseando Caeiro, dança tem existência e, não, significação. Está já não é a dança, a arte, mas toda ciência; quiçá, religião; enfim, toda sistemática ou doutrina posterior (e diverso do que justamente transgride o corpo como sistema, viola suas doutrinas ou leis: o põem na super-ação que a dança é).
O aprendizado da razão, da escrita da ação, do código de conduta, do pensar, ou seja, a restrição das possibilidades deste para a afirmação de um autorizado, de algum que – regendo os demais – firme um acordo identitário, comunicativo, de semelhanças, é, por tudo o que dissemos, uma possibilidade. Necessidade, apenas, quando um mundo se objetiva e, desse modo, precisa tudo objetivar para se manter. As possibilidades não autorizadas, no entanto, permanecem latentes em tudo que se faz, se fez, se pré-determinou. Dar-lhes vazão é, na desinvenção do constituído, na desinvenção do raciocinado, da análise, dos modos de enquadrar a obra vista e a quem a vê, a invenção de outro real – uma poética: “Tudo que não invento é falso”, dirá outro poeta, Manoel de Barros, em seu Livro sobre nada. O inventado para mim (a lei, a razão, os meios, os suportes, os instrumentos, os códigos, a moral, tudo isto em que tenho de me enquadrar, obedecer) é falso, não é a verdade do meu corpo. A verdade dele é sua revelação, sua concriatividade ou demanda própria.
Obrigatório mesmo, essencial, é ser. Por quê? Porque estamos vivos, e estamos vivos antes de todo porquê. Não sabemos por que estamos vivos, mas estamos antes de perguntar por isso! Não decidimos nascer, viver! Fomos e somos lançados na vida (quando vimos, já estávamos vivendo, isto é, morrendo). Logo, obrigatório, essencial, é ser porque obrigatório é morrer e, sendo obrigatória a morte, eis a vida se vivendo, se (re)inventando, essencial. A arte, em correspondência a esse apelo, não tem porquê, senão corresponder à afirmação da vida em meio à morte, ou melhor, ao fazer surgir o inesperado em meio ao esperado, o extra-ordinário: nela, o real (a vida) vem a ser sempre mais do que o fim que se lhe destina, a morte que interrompe todo devir e que, aqui-agora, nos convoca a ultrapassá-la (ultrapassar o fim, o limite) em vida (comemorando-a infinita). Quando infinitos, os corpos finitos – aí se tem o poético! Mas, na medida em que vida se coisifica, que a recebemos pronta (e, por isso, conforme Manoel de Barros, falsa), já semantizada (ficcionada) por normas ou normalidades, toda transgressão do normativo, do normal, da semântica dada, será anormal, sem sentido. Inaceitável. Será, às avessas, o considerado errado, mentiroso. Um distúrbio. Doença. Loucura. Sonho. Fora do eixo, um marginal. O mau! O errado! O pecador! O irracional! O sem juízo! Aí, a arte!?
A poesia (em sentido amplo, originário, e não ainda como gênero literário, como propriedade da escrita) consiste, em Heidegger, como a saída para a libertação de cada ente (coisa, corpo), porquanto o devolve ao ser, se lhe abre. Heidegger mora nesta compreensão primigênia de que o poético é o vigorar, o pulsar, o irradiar de todo ser e não ser: a realidade, por excelência, como (des)construção poética. O poético nomeia, no grego, tal fenômeno sempre permanente, atual, aqui-agora. Não deflagra o originário como origem num passado, não é princípio dado como começo, base de, causa de, mas a imediata irrupção do imprevisível – quando e onde o abismo é, ou seja, ganha margem, limite de, limite para o seu sem fundo. O jamais antes visto, dado e, que por isso, é novo, sempre diferente, poético, pode ou não – a partir de sua unidade, de seu pôr-se – caber no representativo, numa relação, numa comparação, num artifício sistemático ou operativo. Mas o presentativo é sempre único, incomparável, irrepetível. Lancemos mão de um exemplo: se eu perco a mão direta, não deixo de ter a esquerda. O direito e esquerdo são relativos, mas a mão não deixa de ser mão, não deixa de guardar em si a potência de super-ação (poesia) do corpo. Por isso, podemos jogar, dançar, viver com uma mão, com um pé, sem os outros. Podemos atualizar sua potência de muitos modos. Podemos falar, inclusive, em uma dança que pense focando o lado direito do cérebro, o lado esquerdo... Porque já não são lados, não direito e esquerdo, são lugares de potência e realização própria. No um, o infinito. Cada uno é autopoético antes de dependente de algo que, sendo-lhe metade necessária, impeça e determine o seu devir.
Com isso, Heidegger não pretende um conceito, um ponto de vista seu, uma teoria para o poético, para a vigência criativa do uno/ do corpo (sua síntese): atentando para o prévio às representações, às teorizações, às filosofias, coincide com o a motivação da e para haver a cultura como colheita (o sentido), sempre singular, a cada vez que a natureza/terra/ser se mostra. Na medida em que nossa cultura é, uma vez dita Ocidental, de matriz grego, Heidegger vai ao encontro da palavra que salvaguarda a questão da criação desde o princípio (ainda que, ao longo dos tempos, assuma vários significados, e vários significantes, dizendo-se em várias línguas o mesmo): poesia.

Como correspondência às questões, acatamento do apelo do ser, do ser-com, ser natureza, nata, nada, a cultura se funda; quer dizer: o poético, a arte (dança, música, canto) funda a cultura! Constituem originariamente a experiência de memória, do fazer história, da perpetuação do diálogo, da mudança com. Não explicam, não reduzem o real: deixam-no aparecer, no corpo, como corpo inesgotável. Aí, sim, encontram seu princípio: o in-finito, a abertura, o ainda não, o já não mais. Antes de objetarmos uma obra de arte (antes de entendermos obra como objeto, algo já construído, que contém um conteúdo, uma ideia, uma poesia dentro dela...!), antes de compreender a arte dentro da cultura (e de entender a cultura como sistema do qual a arte, entre outras representações, se opera), o poético-mítico, o artístico funda a cultura, a colheita do que vingou, do que veio à luz, à tona, fez sentido, deixou que o velamento (i.mundície) da terra desvelasse mundo(s). Não fechar a arte dentro de uma cultura significa, de tal modo, não fechar a própria cultura, ou seja, impedir sua delimitação, abstração, paralisia de seu movimento e processualidade. A arte dá a chance de o homem, atendendo ao ser que o chama (que o chama a vir a ser, deixar de ser), não se restringir a uma identidade cultural, a uma ideia coletiva, a um modelo de todos, para todos. Dar-lhe o direito à diferença concreta (a que não cabe numa ideia, ou seja, que não pode ser identificada, proposta como: “Diferença é...”, “Esta arte é...”). Abstrair o diferente significaria indiferenciá-lo, torná-lo forma sem matéria. Desmaterializado, não tem nem é mais corpo.
Destarte, não se trata, aqui, de questionar nossa época atual e voltar a uma outra, substituir um sistema por outro (pelo dos gregos, por exemplo!), mas entender que, em questão, no pensamento da origem, está a origem do pensamento. Não apenas do pensamento da cultura, mas do pensamento como pensamento (quando o homem está ao encontro de si, quando o homem não se encontra, não se acha, perdido está na procura, procurado por, suspenso, pensum; enfim: em pensamento). Pensar, de acordo com Heidegger, diz deste deixar o real se mostrar, deste deixar o corpo se mostrar, a vida se mostrar com isto que está sempre suspendido. No abismo. Quer dizer: mostrar o real como o que não se mostra completamente. Cuidar das aberturas do real. Morar no que, na abertura, perfaz, desfaz, refaz limite (corpo): a linguagem. A morada do humano.
O princípio, o príncipe, o principal, o primeiro é sempre o que está à frente, nunca atrás, no passado. Dialogar com os gregos consiste em dialogar com as questões que permanecem e, logo, não podem retornar, não podemos retornar a elas, estão sempre por vir, a nos desafiar. As questões de todas as épocas, e que gerarão as diferentes épocas quando respondidas a partir de determinados conceitos, fazendo com que tudo – o corpo e a arte – se subordine aos mesmos e, assim, toda teoria da arte e história da arte se configure. Dialogar com os mitos gregos, outrossim, com o pensamento poético grego, com o pensamento anterior ao platonismo e ao aristotelismo é, em Heidegger, a chance de libertar o corpo, o ser das armaduras entitativas, das ideias, das essências, das proposições lógicas, das bases do império da ciência e da técnica na modernidade, perpetuadas, segundo ele, na arte, com o nome de Estética. A chance, afinal, de libertar o corpo, o ser, o real do julgo objetivo e subjetivo. Do humanismo. No autocentramento do homem, agente controlador do real, seu conversor em objeto. Aí, está – justamente – o sentido de pensar como diferente de raciocinar. O pensar como instante, hora, lugar, cuidado do ser – onde e quando ele se espessa, se adensa, se compacta, se compactua, corporifica e, portanto, é experienciado. O pensar como o cuidado de tudo isto que nos permite ser o ser e não ser que somos. Isto que mora na linguagem – a força na qual ou através da qual o que é pode propriamente ser. A força na qual e através da qual o ser está, tem estada: morada: é corpo!
A dança é pensamento porque, na experiência da experiência, no pensamento como experiência, cuidado do real, morada na linguagem, roga e cumpre a possibilidade de realização e realização das possibilidades. Dançando, musicando, poetando, os corpos nem por isso deixavam de pensar (talvez, pensem até melhor, porque dão ao real mobilidade, dão ao corpo o que é do corpo). Todavia, educaram-nos a acreditar que arte e pensamento são coisas estanques e, porque pré-definido o lugar da arte como o contrário da razão na dicotomia da cultura (mundo sensível x mundo inteligível) e, sobretudo, porque pré-definida a razão como sinônimo de pensamento, então, para dançarmos ou ao dançarmos, por exemplo, temos de ter a razão. A razão da dança. A razão do corpo. A estética: lógica ou ciência do sensível. Temos de lançar, portanto, aí, mão de uma escrita que linearize, esclareça, uniformize, tire o próprio corpo da sua confusão ou caos, tire o corpo do corpo, para caber numa forma, num sinal, gráfico, num signo, num símbolo, numa simbologia ou teoria. Para que dança, por sua vez, caiba numa generalidade, num gênero. Que se dance só a partir de gêneros de dança, não fosse possível uma dança própria e não tivesse sido, toda dança genérica, específica, pela primeira vez. E como se, mesmo ao dançarmos um gênero, a vez não continuasse sempre primeira.
Em outras palavras, parece-nos legítimo o dançar (científico? pensável?) somente quando escrito – quando escrito em outras palavras! Mas o corpo é palavra: diz. A um só tempo, ouvindo-o, tentamos traduzir – com escrita, com linearidade – o sem corpo, o não linear. Por isso, tudo o que, na linguagem, toca o não escritível da experiência tem de, paradoxalmente, ser escrito para ser relevado (mas não necessariamente revelado). Pudéssemos realmente revelar uma experiência escrevendo-a depois! Ou antes! Não! Antes, uma. Depois, já é, será outra, a experiência. Aquela, passada, não pode ser escrita. Nem a futura, prescrita. A sua fala, o seu dizer, o seu modo de dizer era, e é, e será aquele acontecimento: em devir: em dança: a dança presente. Se, em alguma medida, temos, então, de escrever o que, na escrita, na crítica, na interpretação persevera co-movente, corpo, aberto, dançante, cheio de silêncios e aberturas, não analisemos, não tornemos o corpo um objeto na dança da crítica. Intentemos uma escrita poética. Mesmo na crítica literária, Baudelaire, poeta questionador do seu tempo, já havia dito: “Eu creio sinceramente que a melhor crítica é a que é divertida e poética; não aquela, fria e algébrica, que, com o pretexto de tudo explicar, não sente nem ódio nem amor, e se despoja voluntariamente de qualquer espécie de temperamento; Dessa forma, a melhor análise de um quadro poderá ser um soneto ou uma elegia”. Apenas poetizando a escrita, a palavra fará com que os significados deslizem, para que não caiam no esquematismo analítico, o qual, mesmo admitindo não passar de uma significação possível, entre outras, emite um juízo, propõe logicamente uma obra.
Que seja a crítica da dança, desse modo, dança na crítica, dança na palavra, dança com as palavras, a dança da palavra. Apenas aí a justeza do encontro. Quando, na palavra do corpo, seja corpo a palavra; não signo, representação, sinal, lembrança de, faz de conta que, simulação de, suposição de que, em relação a, mas presença, apresentação e memória de uma já outra e nova experiência – concreta – a partir da outra. Princípio de. Princípios. Manuel de Barros, novamente, traria um verso-luz: “Uma palavra tirou o roupão para mim. Ela deseja que eu a seja”. Ou ainda:

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
Mas não pode medir seus encantos.
A ciência não pode calcular quantos cavalos de força
Existem
Nos encantos de um sabiá.
Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.
Os sabiás divinam.

Os corpos divinam: vêm a ser. Desvelam-se! Desencobrem-se! Descobrem-se! Antes de toda explicação, a unidade disto em que tudo se con-funde: um corpo. Se não o separamos em som e silêncio, luz e sombra, sentido e vertigem, superfície e fundo, para que ela seja. Ele é. Para podermos separar, dividir. Na separação, ele já foi. Nem mais é: se perdeu. Falar dele, sobre ele? Como? Por quê? Apenas falar nele, falar a partir dele, falar a partir do novo corpo – escuta, visão, palavra, sentido por vir. A mediação não é o passo primeiro do dizer, do pensar. O pensar, primeiramente, escuta, acata isto que se diz, já se disse e, como tal, é (nossa) imediação. O imediatamente dito-ouvido em nós. Uma presença, um. Sempre umi.mensamente, sem medida, sem tamanho, aberto. Daí, o conceito diz justamente o que, na história de nosso pensamento, consiste no tamanho, na medida, na forma de toda matéria, no etéreo, na abstração, no supra-sensível, no que não está mais ou ainda não em ação (em corpo!), porquanto se lhe antecipa para poder causá-la, causar a ação, ou justificar uma ação já acabada, fechá-la. O conceito, portanto, é a não ação! O conceito não dança! Mas o permitimos comandar a dança!? A dança subserviente a um conceito (!) acaba justamente com a potência de dançar o ser que não se esgotaria naquela ideia, forma (e, que também, não pretenderia chegar a outra, mas sempre ao princípio: ser – outra!).
O ser, portanto, como traço do sujeito, que o expressa (expressa uma ideia) e o representa (representa ideias do sujeito), que o predica. A arte, a dança, tudo, no Ocidente metafísico, assim, compreendido: tudo precisa chegar ao sujeito, à subjetividade, partindo do sujeito, da subjetividade através de predicados, objetivações: cultura, época, história (outros substantivos também pré-definidos, objetivados por atributos, adjetivações). O corpo como o menos importante, servo do mais importante – que já não é ele mesmo, porque ele mesmo é só ad-jetivo de toda substantivo ou substância: o eu, a essência, a alma, a mente, o deus etc.). Mas como o predica e se predica se não sabemos onde e quando termina, e quando e onde começa? Onde e quando termina sua história, a memória, uma experiência?
Tentemos fazer uma genealogia (buscar nossos pais, e depois os avós e demais ascendências infinitamente; e buscar também amigos; os inimigos; todos os interlocutores; mas também considerar aqueles que não conhecemos, porque o desconhecido, não tendo vindo ao encontro, também fez com que fôssemos o que, até aqui, somos) e não conseguiremos esgotar a experiência do que se é. Deste presença, da presença. É precisamente isto que a faz rica, inesgotável e, por isso, com este seu aqui-agora ínfimo e infinito podemos dialogar, podemos trazer à superfície, ao corpo, toda sua infinidade. Desse modo, dançamos. Sem mapa, sem suporte, sem muleta, o corpo, no labirinto de si mesmo – que é o próprio viver-morrer. Os múltiplos caminhos entre vida e morte serão e são a criação e descrição desse corpo e de tudo mais que, dele participando, e não, o incorpora, o esvazia.
Mas insistimos na proposição e na causalidade, no juízo: O que é dança? Por que se dança e como se dança? E, sob algum predicado, por exemplo, “brasileiro”, reconhecemos a ação: ora, se é dança brasileira, então ela expressa e representa a cultura brasileira; esta, por sua vez, também está conceituada, ajuizada; dessa forma, quem não participa da ideia de brasilidade não pode se afetar pela experiência; não poderá a entender; permanecerá de fora; observando o que insiste exterior, ou seja, que não incorpora naquele que, com o atributo “brasileiro”, por exemplo, não se identifique. Sabemos, todavia, que não é assim: que é possível que deixemos, no samba, de sermos turistas, de sermos de fora, para sambar, para estar ali, no acontecimento da descoberta, da arte, afetados por ela. É possível que a música de Beethoven permaneça para além de sua época e, não precisemos saber o que aconteceu naquele momento para que a música dialogue conosco; a gente não precisa ter ouvido ou lido toda a história da música para alguma música fazer sentido; a gente precisa, sim, ouvir a música! Mas, se por exemplo, na música e dança da capoeira, deixamos de jogar para analisar, para entender que tudo aquilo, em sendo brasileiro, é herança do africano, que se liga com a escravidão, remonta à luta de classes – não haverá tempo para ser afetado, só para confirmar o que já sabíamos, para tornar o visto apenas ilustração, comprovação de uma ideia. Porque, afinal, só nos afetamos pelo estranho, pelo não sabido, e não pelo familiar, pelo semelhante, pelo conhecido, pelo igual. É preciso que capoeira seja sempre surpreendente!
Desse modo, um branco, de formação cristã, também pode se emocionar num terreiro, mesmo que não seja (ele não precisa ser predicado) como candomblecista, umbandista. Ser comovido e ter uma experiência – própria – não significa obedecer aos juízos do que seja estar num terreiro. É possível que aquela experiência, misturada a outras, gere uma aberração: um cristão espírita ateu greco-romano umbandista! Ou seja, na contradição dos atributos, já não há suporte ou predicação, porque, impossível, a lógica. Há o próprio. O sem parâmetro. E, portanto, sem comparação. Por isso, concretamente diferente. Poético. E verdade. A verdade deste corpo.
Mesmo quando, na dança, seguimos um modelo, uma técnica, um meio para chegarmos, de novo, à forma pré-tendida, garantimos a reprodução? É sempre ao mesmo corpo, à mesma dança, que se chega? Todos, dançando balé, samba, valsa, salsa, dançam igualmente? Por que não? Porque todo caminho prescrito, de orientação de nossos passos, de nossos movimentos, vindo ao nosso encontro como tudo o mais que na vida nos vem, também se mistura – interfere e é interferido pelo que em nós perfaz história, memória, experiência que não começou ali, nem terminará, porque só há princípio. Princípio. Princípio. Quer dizer: a experiência, sempre sendo diferente, faz com que o diálogo, o modo de lidar com a técnica também gere diferentes danças. A ponto de, em determinado modo, transgredir a técnica, afetar o que o afetou. Questionado por ela, questiona-a. Gerando outro caminho, outra técnica.
Na valorização da arte, Heidegger está fora da lógica da salvação como promessa de síntese, de religação do caos em nome do progresso, de um mundo perfeito, um mundo melhor. Não: é a religião e a tecnociência que idealizaram um mundo melhor e perfeito. Heidegger falará, sim, em salvar no sentido originário: salvar-se como conduzir-se ao sumo, ou seja, consumar-se. Consumar o que é? O próprio. O que cada um é. A sua diferença. O seu limite e não limite: o seu perigo.
Não podendo ser dita (no sentido de ser representada, ser conceituada, se escrita – e toda escrita é razão, e não há razão sem escrita), a diferença, o perigo do corpo, o corpo a perigo só pode ser perpetuadamente vivido, experienciado, descoberta. Ou melhor: não é o homem – sujeito da realidade – que descobre a diferença. Nem a diferença lhe pertence. Na verdade, tudo o que ele é (tudo o que já veio à sua consciência ou razão) é obra, é fruto, é co-memoração de encontros e encontros, alterações, diferimentos, ferimentos, ou seja, aberturas. Isso quer dizer que a arte salva porque coloca o humano ao encontro de sua humanidade ou humanização: na sua abertura. Não salva quando o permite integrar-se ao sistema que o exclui. Salva quando o exclui tão radicalmente do sistema, quando se torna independente, livre, dele. Que celebra o sem sistema! Salva quando não tira o humano da morte, mas, recolocando-o na sua mortalidade, o põe e o repõe na vida.
Contudo, a nós só nos é ensinado o tempo todo a sair da vida, do mundo, viver em função do que está além dele, viver para, por causa de uma morte, assim, conceituada, idealizada. A nós é ensinado viver para morrer enquanto morrer for vida ainda, celeste ou infernal, mas sempre etérea.
Se a questão, então, eminente é a referência entre arte e humanidade, a pergunta eminente serásempre: ser humano – o que é isto? O mundo moderno disse: um animal racional. Mas tal definição, diz Heidegger, é tradução de uma sentença grega, que diria, na verdade, que o homem é aquele ser vivo de quem a linguagem cuida e cultiva. Aquele que é na linguagem. Restaria, então, aqui, diferir o homem como quem é definido pela razão e o homem como quem só é porque na linguagem (porque é na linguagem que o é é). Mais que isso: diferir linguagem de razão, libertar a linguagem da razão, ou seja, da visão de que ela é o meio que o animal humano tem para raciocinar.
Diferir linguagem de razão é toda a tarefa de pensar a tradução do logos grego por razão e não por linguagem. É morando na linguagem, tendo-a por casa, que o homem se revela: ser em ação: ser em corpo: corpo sendo: realidade se interpretando, emergindo como sentido, imergindo, indefinindo. A arte e, mais precisamente, a dança como o lugar da experiência do corpo é, primeiramente, lugar da experiência da linguagem – a dança é onde e quando a linguagem se descobre porque desencobre o ser, o deixa estar, num próprio, na diferença de um corpo. Existência. O que não significa que Heidegger seja um existencialista, ou seja, alguém que torna o pensamento da existência como eventual, entre outros possíveis. Isso seria ainda acreditar que a existência é um dos predicados do homem, ou seja, seria pressupor ainda o sujeito e seus predicados, o sujeito e sua existência. Pressupor o ser como traço do ente! E não o ente como um traço, um limite do ser, da existência!
É o francês Jean-Paul Sartre que se aproximaria mais da noção de existencialismo: negará a essência (por não haver ideia ou fundamento prévio) e considerará que tudo é existência, ou melhor, que pela existência a essência se conquista, o vazio do sujeito se preenche na consciência: o homem, não sendo nada, permanece ainda primeiramente consciente e senhor da ação, constrói sua essência historicamente segundo seu livre-arbítrio. Aí, o paradigma de fora e dentro (que é sempre o dentro e o fora do sujeito humano, sempre ele como centro realizador da mediação!) se mantém: o fora a construir o dentro (em vez de o dentro construir o fora, como no pensamento moderno tradicional). Heidegger, na verdade, dirá que a existência não é do homem (Eu, homem, tenho uma existência: eu existo!). Reiteram-se, nessa formulação, de um lado, o homem (o sujeito) e, de outro, a existência (o depois, o que ele vem a ser, algo, uma coisa, uma objetividade). Não: o homem é quando já lançado, quer dizer, o homem – quando lançado à vida, à morte – já é, já existe, e só aí existe o existir. O humano. Ele está sempre dentro (“fora”, na realidade, constitui o ser que não ganhou ainda lugar, incorporação, humanidade; o que permanece ainda não: silêncio). Lançado, imediatamente, nas coisas, no que vem ao seu encontro, estão também elas imediatamente nele. Estão dentro? Fora do homem, as coisas? É na fronteira, no entre, que podem dentro e fora se desdobrar. Não há como haver dentro e fora sem limite, sem a dobra de onde eles se desdobram e, a um só tempo, se separam e se unem. Este limite, o do ser, é dado, se dá na e pela linguagem: daí, vivido como corpo, não no corpo, pelo corpo. Mas, simplesmente, o corpo vivido e vivível.
Dito de outro modo, se existir é estar, pôr-se para além de, para fora, aberto, insistir seria estar para dentro, isolado, ensimesmado. Existir, então, abrir-se – para a diferença. Insistir é fechar-se. Manter-se igual. Um in-divíduo: algo que não se divide, que não compartilha, não se perde. A questão, por isso, não implica trocar, tal como fez o Ocidente pós-moderno, pós-estruturalista, a crença na igualdade, sempre-igual, pelo elogio da diferença sem permanência; trocar a essência pela existência. Reportando-se aos gregos anteriores ao platonismo e ao aristotelismo, Heidegger mostra que igualdade e permanência não são sinônimas. Se só mudássemos, sem permanecer, não saberíamos que mudamos, que houve e há mudança. Seria uma coisa, e o fim dela. E outra, e o fim dela. E outra, e o fim. Separadamente. A cada instante, porém, somos diferentes, mas continuamos. Não somos abertos de tal modo, que então, coincidindo com a abertura, nela nos perdendo, corpo algum mais existiria, porque ele mesmo já o próprio sem corpo. Enquanto nos abrimos e recebemos corpos que, por sua vez, se abrem para receber o que, de nós, permanece. E permanece vazio. Quer dizer: é permanecendo corpo, como corpo, que a abertura é. Que não ser é. E o que é é (o corpo é) não ser. Vazio. Quer dizer uma vez mais: é permanecendo corpo, que o ser e o não ser fazem sentido (e, logo, silêncio) na ou como linguagem: força i-mediata e, não, mediata do pensamento, a serviço dele, como meio de/da razão, de instrumentalizar a própria corporeidade, fazendo com que o ser insista, se abstraia, se torne objeto, objetivo, perca a concretude de permanecer mudando; e, mudando, permanecer.
Tal é o desabrochamento do ser em cada e como cada próprio: alguém que não é sempre a mesma coisa, mas é sempre o mesmo se alterando. O sentido de verdade, diz Heidegger, a partir dos gregos arcaicos: revelação do que, existindo, não insiste, mas persiste. Que persistir não é insistir! Persistir traz este “per” que vem do grego “peras” e significa “limite”. Palavras como perigo, percursos, percalço, perímetro, peregrinação, perturbação, porta, porto evocam a noção de liminaridade, de fronteira e, logo, tem no corpo, nos seus desvelos e véus, a única verdade.
 
A COREOGRAFIA

Aonde chegamos? Ora, dissemos que a questão não é considerar que tudo o que o sujeito é vem de fora, de um mundo objetivo, de sua relação com objetividades, de seu pertencimento a um sistema; tampouco, que o mundo é objetivado por algum um sujeito prévio (e construtor dos sistemas-relações). Antes de fora e dentro, flagramos limite, somos flagrados pelo que dá limite ao ser, ao vir a ser e deixar de ser, ao infinito: pelo que dá corpo. E é no corpo e como corpo se mostrando e se ocultando que cada um será verdade. Criação. Poética. Não mais “verdade” como sinônimo de correção, de certeza, de prova e, logo, não mais admissão da mentira, do falso, da ilusão como um contraponto. Tudo o que do corpo participar será. É. Ou seja: será e é real. Se está em ação, em experiência, se corporifica, não é mentira, não é falso. A fantasia, o fantástico, o sonho, o louco – tudo isto não está fora da realidade! Tudo isto compõe, depõe o real. Outrossim, o real só muda, se altera, porque, não estando dado, provém do caos da realidade: ela é absurda. Sonha-enlouquece justamente para deixar ser tudo o que é, não era, poderá vir. E vem. E vai. Já foi.
            Tudo isso soa estranho ao mundo nosso, objetivo, porque nossa sociedade, se consolidando em torno de parâmetros, eixos, normas, gera contrários excludentes, gera excluídos: o normal instaura anormalidades, anômalos, marginais, desobedientes, transgressores: os próprios artistas. Então, quando Heidegger diz que temos de nos voltar para a fala da arte, para o pensamento poético, para o pensamento do corpo, parece, para quem reduz o real a algo objetivo, um absurdo, uma loucura, um falta de cabimento: parece que, então, entregaríamos o poder aos loucos, aos sonhadores, aos desajustados! Trata-se de entender, sim, que o poder do homem não é do homem, se dá ao homem – a natureza, a vida lhe dá todo poder ser um poder ser. Desse modo, não se elogia à perda de todo limite, o livre-arbítrio de fazer qualquer coisa, de qualquer jeito, pois – se dissemos que o limite é sempre a morte – a questão é afirmar não só a nossa vida, mas também a da outro, respeitar o limite entre nós e os outros. Não fazer com o que nosso desejo de vida seja o aniquilamento do alheio.
Quando a ciência se depara com a falta de objetividade do mundo – quando a razão entra em colapso, quando as próprias disciplinas, como campos, compartimentações da realidade, já não podem ficar separadas, mas pensar conjuntamente, interdisciplinarmente, transdisciplinarmente – ela acaba, inevitavelmente, buscando um diálogo com a arte – pois, afinal, a própria arte teve se tornar uma disciplina, uma área de conhecimento entre outras (mas, porque, irracional, ou seja, tratando do que não é razão, da outra parte, a não científica, se sagrou menos importante como estudo, nas academias, escolas, universidades). Começa-se, aí, a buscar ouvir a arte quando, então, a ciência entende que o não científico (o não objetivo, o não claro) também é importante, é preciso incluí-lo no sistema. E, então, a arte, o que não cabe em sistema – enquanto o obscuro dele – se subjuga ao pólo inventado pelo próprio sistema, o da razão: à contraparte do subjetivo. Valora-se a arte, como mais um meio, ou seja, mais um modo de servir, de relevá-la na medida em que serve para. A arte, então, a te rum papel, uma utilidade para os sujeitos, na medida em que a resolver, agora, a dualidade objetivo x subjetivo, ou seja, na medida em que mantém o próprio espírito epistemológico, científico. Só que, mantendo-se a divisão objetivo x subjetivo, claro x obscuro, o pensamento não se liberta da razão para a arte, não se liberta do animal racional para o ser vivo na linguagem (porque é preciso, afinal, esclarecer o obscuro, é preciso fazer com que a arte tenha e seja razão, tenha e seja ciência da arte – a lógica ou análise da obscuridade, ou seja, um complemento para a ciência e já ciência. E, não, arte. Então, vemos aqui e ali, a dança como terapia, como contribuição à saúde mental, na psicologia. A dança como reabilitação. A dança-educação. Dança como lugar de reconhecimento sociocultural do feminino. A dança como inclusão social. A dança como representação da luta de classes. Enfim, a dança tentando responder não às questões do ser do humano (morte, vida, tempo...), mas a problemas situacionais, criados por um determino modo de mundo que alijou a arte, que não acreditou na arte e que, agora, acredita, sim, desde que ela ocupe o lugar que a ciência lhe conceda.
Dizer, enfim, que o pensamento poético não traz salvação (para os problemas do mundo moderno, para a pobreza, para o gênero feminino) está, sobretudo, a reiterar que a arte não parte de problemas. Logo, nada tem de resolver. Problemas pressupõem soluções. Quem soluciona é religião (com fé), ciência (com provas), filosofia moderna (com teorias). Solução quer dizer: fórmula. Para o progresso, para a felicidade. O que é a plena felicidade? Basta pensarmos o que é a plena infelicidade. Morrer. Perder alguém. Cogitar a ausência. Nada nos deixa mais infeliz que a iminência e a eminência da morte. Para acabar com a morte, em nome da imortalidade do homem, o pensamento que ora se critica. Ao buscar o poético, ao buscar o nada, Heidegger nos coloca de novo na morte, no princípio do ser, no apelo da vida, para a vida, no apelo da nossa humanidade, de nossa voracidade pelo presente. Colocar o humano na morte não é, aí, pessimismo. Não é considerar a morte como algo no fim da vida e que, quem sabe, religiosamente, cientificamente, podemos negar, adiar, romper, desfazer. É acatando a morte aqui e agora, enquanto se vive, que vivemos, e podemos, e devemos viver o aqui-agora ínfimo e infinitamente.
Afirmar a vida não é camuflá-la na garantia, pela arte, do acesso a informação (se o sistema continua); afirmar a vida antes de ajudar o louco (se o sistema continua); afirmar a vida antes de representar o preconceito racional (se o sistema continua).  Continuar o sistema está a dizer: deixar o mundo, assim, objetivo. Apenas o re-arrumar. Afirmar a vida, por outro lado, na arte, como arte, quer dizer bagunçar um mundo, para, partindo do i.mundo, advir um novo.
Na objetivação e subjetivação compulsivas, assistimos uma dança e então não dançamos, deixamos de dançar para ficar procurando a ideia da dança, o motivo, o objetivo, a finalidade. Ou seja, tudo é mais importante do que aquilo que está em ação (não mais na arte como objeto, mas em ação entre o que se obra e nós mesmo como parte do obrar). O importante tem sido sempre o que provocou a ação e não a compreensão de que a ação é a provocação possível. Assim, entendemos, por exemplo, que alguém dança para expressar um sentimento. Já, então, partimos de uma ideia (de sentimento!), para, então, depois dançar. E dançar será nada mais que representar o conceito. Expressar uma razão, um sentimento (porque aí o sentimento, como conceito prévio, é razão). Quando não é? Amar, por exemplo, se aprende amando. Não podemos saber o que é o amor e cogitar um juízo sobre o amar sem que já não houvesse corpo amado-amante. Logo, é no corpo, como dança que amor – sentimento! – se funda e afunda, afunda e funda, sem conceito prévio, apenas como sentido, e não semântica: corpo, dança, descoberta e encobrimento. Mas na dança, na música, na literatura, buscamos o dentro. A causa. O autor. Ao buscar, o que é o autor, tentamos, também vemos o que, nele, no seu corpo, na sua história, também tem causa. Ele pertence a uma época. A uma cultura. Então, a dança é expressão deste autor, representação de uma cultura, de uma época. Enfim, tudo está dado, está abstraído: o autor, a cultura, a época, o tempo, o espaço. Ficamos relacionando coisas dadas, quando, na verdade, a dança está, naquele momento, já fundando o ainda não dado, na cultura, na época, no tempo, no espaço, naquele homem, e por isso, como as demais artes, fundação de mundo novo, e não representação de mundo dado.
Por vezes, costuma-se, na constatação de que as coisas, não estando dadas, não havendo essência, não têm autor, apelar para o leitor, ou espectador, ou ouvinte, como o único autor possível. Vazia de significado, como puro significante, o espectador dá a significação: preenche a lacuna. Mas este sujeito também não é, neste raciocínio, vazio, sem essência? Como ele constrói o sentido do que não tem essência, se ele também, essência, não tem. O autor, sem essência. A obra, como um objeto, sem essência. O leitor, sem essência. E um se relaciona com outro. Como, se cada um pelo outro é feito, desfeito, refeito. Então, não o leitor, o ouvinte, o espectador que, a seu bel-prazer, constrói a razão da obra, na medida em que nenhum dos dois têm alguma pré-definida. Ele, leitor, é construído pela obra, na mesma medida que a obra também é o que inventa o artista. Este, não sendo a origem da obra, tem nela a sua origem. Deixar, então, a obra falar – e não o homem – é, neste pensamento, deixar que no humano em obra fale primeiramente a linguagem. O homem não constrói a obra, ele se constrói na medida em que ela, construindo-se na linguagem, pronuncia o humano. Este é, na arte, em arte, a cada vez, obra. O novo desafio, dirá Heidegger, será, então, não mais supor linguagem como meio de expressão, de comunicação entre sujeitos, ou entre sujeitos e objetos. A linguagem como o que deixa tudo estar em tudo, reunido e, a um só tempo, distinguível: um. A linguagem como o que deixa cada um ser cada um.
Por fim, quando Fernando Pessoa diz, em outro momento, “o quem em mim sente está pensando”, detona toda a ocasião de um pensamento encarnado. Não de uma razão simultânea à emoção, como se, na hora de dançar, estivéssemos, a todo tempo, na razão, no controle. Ensaiando uma coregorafia, ou seja, aprendendo a dominar ou controlar os movimentos, a dança, em verdade, só acontecerá quando tudo deixar de ser degrau e procura, obediência a, a fim de que, porque – incorporado, assimilado – parte de nós, irreversível. Quando não mais procuramos a dança, porquanto já não somos procurados pelo e no dançar. Sermos procurados por: ouvir a voz do ser: a linguagem. Isso, a vida da arte na arte de todo viver. E, talvez o poeta, um Manoel de Barros, ainda nos ouvidos, revele o que, em Heidegger, em Guimarães Rosa, em Alberto Caeiro, é o nada acontecendo na palavra (e, oxalá, na crítica, na interpretação, por vir, de alguma dança...):

O que não sei fazer desmancho em frases
Eu fiz o nada aparecer
(Represente que o homem é um poço escuro
Aqui de cima não se vê nada
Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver
o nada)
Perder o nada é um empobrecimento