HISTÓRIA
DO BALÉ: DO RENASCIMENTO AOS BALÉS RUSSOS
Este texto é uma compilação de fragmentos do livro A SELVAGEM DANÇA DO CORPO, de Marcus Vinicius Machado e Almeida (Curitiba: Ed CRV, 2011). Conta
também fragmentos do livro de Rosana van Langendonck e Lenira Rengel: PEQUENA VIAGEM PELO MUNDO DA DANÇA. (São Paulo: Moderna, 2006).
Com a queda da Igreja e a Revolução Científica e, a um só
tempo, a queda da nobreza e o nascimento da burguesia, as sociedades, as
culturas veem seu pensamento – a matriz dele, a sua filosofia – deslocando-se,
definitivamente, do plano divino para o plano humanista, ou seja, confundindo
pensamento com ciência, valorando a razão. É neste sentido que, diferentemente
do passado, em que não se poderia compreender arte, religião e ciência de modo
desvencilhado e tal como os pensamos atualmente, que a própria ciência e arte
nascerão como campos bem definidos, ou seja, representantes de discursos,
ideias diferentes e, sobretudo, opostas. Com a especialização dos fazeres
humanos, isolando-os uns dos outros através de tecnologias distintas. O ato de
dançar, antes, um fato jamais isolado, ou seja, jamais uma categoria (a saber,
de arte), porque a fazer-se numa complexidade de ações que envolvem ritos
religiosos, cantos sagrados, pinturas corporais.
Mesmo dentro da dança,
também teríamos hoje um divisão dos saberes, criando hierarquias internas: o
coreógrafo; o bailarino e intérprete; os preparadores e professores desta
técnica, os maquiadores, os que produzem sapatilhas, os iluminadores, cenógrafos
e figurinistas. No entanto, o que nos interessa, por ora, é a forte hierarquia (inclusive
no que tange ao reconhecimento enquanto remuneração) entre dança (arte) e
ciência; em outras palavras, entre nobreza e burguesia; e, mais à frente, com o
Romantismo, entre os gêneros masculino e feminino – gerando conflitos, tensões
provocadas por clichês, símbolos, e re-provocadoras deles próprios. Nas
sociedades burguesas nascentes, tudo nasce e sobrevive de um valor e, portanto,
é a nobreza que, tentando se valorar ainda neste empreendimento, revalorizará a
dança dentro deste espírito. Um valor, a saber, distinto, privilegiado ao
cultuado valor econômico burguês. Um valor divino. Um dom.
É mais fácil perceber que
a ciência e não, a arte, tem um grande desenvolvimento neste período. É comum
identificarmos a era moderna como o momento do desenvolvimento técnico e
científico. A ciência passa a ser entendida como a atividade mais suprema do
homem, e que sem dúvida trará mudanças econômicas, políticas, sociais, culturais
e subjetivas de forma gigantesca, levando o homem ao topo de sua evolução. Mas se
a ciência se inaugura na modernidade e tem uma legitimação meteórica, afirmamos
que a arte, de forma não tão clara também segue este processo, muitas vezes se
legitimando em patamares não tão consagrados, e principalmente criando a idéia
de que seus criadores, privados de recursos financeiros, estão à margem da
economia capitalista. O sociólogo Pierre Bourdieu nos mostra que há
consagrações que não necessariamente se referem ao capital ou à propriedade
privada, mas sim ao que ele denomina de capital simbólico. Com o capital
simbólico, “a única acumulação legítima consiste em adquirir um nome, um nome
conhecido e reconhecido”, diz Bourdieu. Deste modo, a arte, principalmente a
erudita, mesmo que seus criadores vivam em privações econômicas e materiais,
muitas vezes apresenta a ideia de que eles estão alheios às exigências da vida
material e capitalista. E, na ideologia da era moderna, os campos da arte e da
ciência como esferas quase que opostas da existência humana. Parte da
legitimação da arte se dá porque esta se coloca como uma espécie de
diferenciador, na mão contrária à ciência. Se a arte, ao longo da modernidade,
e principalmente no século XIX, começa a configurar a ideia de que ela
transporta o humano para um lado não-racional, imaginativo, sonhador, sensível,
extraterreno e extemporâneo da existência, a ciência, num lado oposto, nos
coloca em contato com a realidade, com a razão, com objetividade.
A antiga aristocracia, com
o crescente enriquecimento da burguesia, era obrigada a partilhar terras e
poderes com a nova classe ─ a burguesia. É claro que ambas vivem no novo
sistema econômico. Elas igualmente se capitalizam, formando uma espécie de
burguesia aristocrática e outra classe que denominamos de grande burguesia. Neste
sentido, continuidades e descontinuidades se processam na burguesia
aristocrática: alguns valores do antigo regime ainda cumprem seu papel de
valoração simbólica, como a tradição de nomes de família e outras instituições,
bem como um certo ideal do de requinte e nobreza ligado a estes. Quanto à arte,
ela é totalmente capitalizada e dividida: há uma arte mais apropriada à grande
burguesia — a arte mais popular, misto de divertimento e passatempo —, e outra
mais adequada à elevada burguesia aristocrática ─ esta última, sim, é a arte
legítima, a erudita, a clássica, a grande arte. Mas, por outro lado, a grande
burguesia, em sua forma de legitimação, é vista como a classe que veio
transformar o mundo, retirando da antiga aristocracia uma série de tradições e
mitos que pareciam eternos, inabaláveis e de certa forma até mágicos,
religiosos, mas que paralisavam os avanços do mundo em suas novas descobertas. Em
contrapartida, em sua defesa consagradora, devido à longa ligação da realeza
com a Igreja, a aristocracia, na forma de uma nova nobre burguesia, se afirma
com dotes eternos, nobres e tradicionais de um passado longínquo, honroso e
altamente refinado, espécie de presente dado a poucos homens abençoados com
gosto e sensibilidade quase que celestiais. Aí, a aristocracia viria a trazer
para os salões nobres a dança.
A burguesia aristocrática
quer perpetuar o seu poder, que pouco a pouco se fragiliza, e a grande
burguesia, devido à ascensão, passa a ser vista como um inimigo real e opositor
à herança milenar. O que queremos dizer é que, se arte e ciência se consagram
como campos que inauguram a modernidade, é porque elas estão como
representantes de duas classes que se tensionam. E esta constituição não é
devida apenas ao acúmulo de capital realizado pela grande burguesia, mas passa
pelo poder dos sistemas simbólicos. A ideologia do artista romântico, privado
de seus bens e de uma vida farta, que tanto alimentou os devaneios da própria
arte, pode ser vista como uma metáfora da aristocracia decadente, pois, mesmo
sem bens materiais abundantes, ainda guardava sua dignidade celestial por ser
herdeira de uma super classe, na qual um título de nobreza está para além de
qualquer privação. Este título nobre não pode ser comprado pelo burguês vulgar, sem tradição; é um direito, um dom
consagrado por Deus, e é inalienável. Ser nobre confere nobreza, sensibilidade,
distinção. A ideologia do artista antiburguês ganha sua expressão máxima no
Romantismo, apesar de paradoxalmente esta ideologia também ser uma forma
capitalista de consagração cultural de uma classe e de sua arte. Mesmo
desprovida de capital, a pequena burguesia, que tentava viver da arte legitima,
cria para si um estilo próprio de viver que se configurou na boemia própria do
artista — “sua ociosidade é um trabalho e seu trabalho um repouso (...). [o
artista] não segue leis. Ele as impõe”. Nesta direção, os artistas também
estabelecem relações de desprezo com o grande burguês que está “escravizado às
preocupações vulgares do negócio, e o povo, entregue ao embrutecimento das
atividades produtivas”. Constituiu-se a ideologia da nobreza do grande artista,
mesmo que miserável.
A
partir do século XV, com o intenso movimento de renovação em muitos âmbitos da
vida social e cultural, chamado de Renascimento, as cortes se transformaram.
Pela necessidade de ostentar suas riquezas, passaram a comemorar, com grandes
festas, datas como nascimento, casamento, aniversário. A dança se desenvolve, particularmente
em Florença, na Itália, no palácio da família Médici, onde, nas festas, eram
apresentados espetáculos chamados de trionfi
– triunfos, que simbolizavam riqueza e poder. Vários artistas eram convidados a
colaborar na preparação desses espetáculos, entre eles Leonardo da Vinci. No
ano de 1459, numa festa de casamento, foi apresentado o primeiro triunfo
considerado balé. Em 1550, no carnaval de Veneza, foi encenado um
dos triunfos mais suntuosos, no qual os dançarinos usavam máscaras bordadas com
fios de ouro e pedras preciosas, leques de plumas e mantos de seda adamascada.
Catarina de Médici se casa em 1548 com o Duque de Orléans, que se tornou Henrique
II na França, levando a idéia de espetáculo para a corte francesa. Nessa época,
o espetáculo era uma mistura de canto, dança e poesia e constituía um
passatempo para o rei e a corte. Os temas escolhidos eram mitológicos, em sua
maioria. O rei participava interpretando uma divindade, que as pessoas da corte
adoravam. O primeiro “balé da corte”, intitulado Le Ballet Comique de la Reine (O Balé Cômico da
Rainha, foi apresentado em 1581. que durou seis horas, com participação de
carros alegóricos e efeitos cênicos.
A dança, nessa época, era quase
exclusivamente masculina, mas, nesse balé, começou a haver a participação de
algumas damas da corte, formando o que se pode chamar de primeiro corpo de
baile (grupo de bailarinos que realizam movimentos iguais) da história da
dança. Iniciou-se, então, a formação de muitos desenhos geométricos e direções
no espaço na movimentação da dança, lançando-se os fundamentos de uma nova
forma de arte. Na passagem do século XVI para o XVII, a dança ainda continuava
ligada à situação de festa, porém, na Itália, ela já se desenvolve como forma
autônoma de representação, onde não há mais espaço para poesias, deuses e heróis. Os personagens passam a ser plebeus
vivendo paixões humanas, como retrata, por exemplo, o famoso trio Pierrô,
Arlequim e Colombina. No rastro italiano, a França vai, aos poucos, retirando
do espetáculo as partes recitadas, substituindo-as pelo canto. No século XVII,
o rei Luís XIV (1638-1715) proporciona um grande desenvolvimento para a dança.
Exímio bailarino, criou vários personagens para si próprio, como deuses e
heróis. Sua grande aparição foi como “Rei-Sol”, aos catorze anos de idade, no
balé real A Noite. O personagem derrotava as trevas, usando um traje de plumas
brancas. Luis XIV fundou a Academie Royale de la Danse. A chamada
“comédia-balé” veio para substituir o “balé da corte”. A primeira tentativa do gênero foi Os
Inoportunos. O esquema da comédia era entremeado e enriquecido com bailados.
A
dança saiu dos salões palacianos e chegou aos palcos dos teatros, ainda como
mera coadjuvante de alguns trechos de óperas. Jean Baptiste Poquelin, conhecido
como Molière, criou temas para balé, pois incluía cenas de dança em todas as
suas comédias. Nessa época, a dança pertencia ao teatro, ainda não era uma arte
autônoma, e os intérpretes, que participavam dos espetáculos, eram ciganos,
dançarinos e acrobatas que divertiam a multidão. Esses espetáculos com dança
marcaram o início do seu desenvolvimento e de sua autonomia como arte. O
movimento assinalou a presença de coreógrafos e teóricos de dança, que passaram
a ensinar em academias abertas a alunos de todas as classes sociais. A exigência
de uma técnica refinada para um profissional da dança fez com que Pierre
Beauchamp (1636-1705), músico e coreógrafo da Academie Royale de la
Musique et de la
Danse, criasse as cinco posições básicas de pés para
balé, posições de braços e de cabeça que as acompanham e são conhecidas até
hoje.
No
século XVIII, o balé nasce da união das acrobacias dos profissionais e da
leveza e graça da dança das festas da aristocracia. Luís XIV criou uma
companhia de dança, com vinte bailarinos, para a famosa Ópera de Paris. A
vestimenta dos bailarinos também está ligada ao desenvolvimento da técnica da
dança. Os vestidos, compridos e pesados, impediam o virtuosismo de movimentos
verticais. Os temas para balé começam a exigir a ilusão do vôo e, para isso, os
cenógrafos utilizaram alavancas e roldanas para erguer os bailarinos. Marie-Anne
Cupis de Camargo (1710-1770), La
Camargo, grande bailarina da época, foi a primeira a ser
erguida por máquinas e enriqueceu a dança com movimentos verticais. Encurtou a
saia na altura dos joelhos para facilitar sua elevação e os movimentos de
bateria dos pés, que antes eram executados somente pelos homens. Contemporânea
de La Camargo,
Marie Sallé (1707-1756) procurou usar roupas mais leves, como as túnicas
gregas, em um bailado chamado Pigmaleão, mas esse tipo de vestimenta só ganhou
popularidade duzentos anos mais tarde, com a moderna Isadora Duncan.
A
rivalidade entre La Camargo
e Sallé era marcada por seus estilos diferentes de dançar. Enquanto Sallé se
apresentava com uma dança solene, mais expressiva e dramática, La Camargo era mais ágil e
leve, realizando saltos e passos rápidos, criando uma forma mais acrobática na
dança. A luta contra as saias pesadas e a busca de liberdade dos movimentos
continua até depois da Revolução Francesa (1789), quando o costureiro da Ópera
de Paris, Maillot, criou a malha, dando ao bailarino maior liberdade e
mobilidade. Enquanto isso, na Rússia, o czar Pedro, o Grande (1672-1725),
fundou a Escola Imperial Russa, no Teatro Imperial Mariinski, hoje Kirov, berço
de uma tradição que fará a glória do balé russo.
Também
no século XVIII, Jean-Georges Noverre (1727-1810) publica as famosas Lettres
sur la Danse
(Cartas sobre a Dança), um manifesto válido até hoje, no qual é defendida uma
dança espontânea, com roupas leves e rostos expressivos, buscando exprimir
idéias ou paixões. Idealizou uma nova forma de dança, que preconiza o balé de
ação, que se constitui numa obra coreográfica baseada em uma história
dramática. Contribuiu, também, para que a dança fosse definitivamente para os
teatros. No século XIX, outro teórico, François Delsarte (1811-1871), cantor
francês, teria abandandonado sua profissão quando sua voz começou a falhar. Seu
interesse se voltou para os estudos da relação entre o gesto e a voz. A partir
da observação das pessoas nas ruas, nos parques, nos hospitais, construiu uma
teoria codificada das relações entre o gesto e a emoção. Para ele, as emoções
são transmitidas principalmente pelo tronco, uma das características da dança
moderna, diferente da dança clássica, onde o rosto e as mãos são utilizados
para exprimir sentimentos. As pesquisas de Delsarte influenciaram diretamente
os trabalhos dos dançarinos modernos, como Isadora Duncan, Ruth St. Denis e Ted
Shawn. Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950), músico suíço cuja pesquisa parte de
uma reflexão sobre o ensino da música. Como músico, ele constatou que, para se
aprender música, ficaria mais fácil se o corpo se integrasse aos movimentos
rítmicos. Desenvolveu um método pedagógico que consiste em decompor o ritmo e
dar uma interpretação ao movimento, instaurando uma relação estreita de
dependência entre o movimento e a música. Seu trabalho contribuiu
principalmente para o estabelecimento das fundações da dança moderna alemã.
Foi
montado o balé A Filha Mal Vigiada, seguindo fielmente as idéias de Noverre.
Trata-se de um balé-pantomima, que usa muitos gestos e expressões faciais, com
muita dramaticidade. Durante a Revolução Francesa, a dança, que era
financiada pela corte francesa, parou de se desenvolver por causa de problemas
econômicos. O centro de interesse passou a ser a Itália, onde o napolitano
Salvatore Vigano (1769-1821) inspirou-se nos princípios de Noverre para criar
seus balés. No ano de 1832, o italiano Felipe Taglioni
(1777-1871), grande mestre de balé, apresentou um balé considerado o
carro-chefe do romantismo, “A
Sílfide”. A sílfide representava um ser sobrenatural, na figura de uma jovem
com asas envolta em névoa.
As bailarinas vestiam saias brancas de tule, os chamados
“tutu”, dando maior claridade e leveza à cena. A figura principal foi
interpretada pela bailarina Marie Taglioni (1804-1884), filha de Felipe,
primeira a usar sapatilhas de ponta inventadas por seu pai, incorporando-as
naturalmente à sua dança.
A
importância de Felipe Taglioni na história da dança deve-se, também, à renovação
do vestuário. Popularizou o tutu, o corpete rígido e as meias de malha,
exatamente como se pode observar atualmente nas apresentações dos chamados
“balés brancos”. A
segunda estrela da dança romântica foi Fanny Elssler (1810-1884), que estreou
na Ópera de Paris aos 24 anos. Bailarina de grande vivacidade e muito sensual,
contrastava com o estilo leve de Marie Taglioni. A italiana Carlotta Grisi (1819-1899), outra
grande bailarina desse período, fez seus primeiros estudos no Teatro Scala de
Milão dirigida por Carlo Blasis. Carlo Blasis fundou a Academia de Dança de
Milão. O poeta e crítico da Ópera de Paris, Théophile Gautier (1811-1872),
criou, especialmente para Carlotta Grisi, o balé Giselle, obra considerada o
grande exemplo de balé romântico. A dança é narrativa e identifica-se com a
ação, o que agradou ao público da época.
Contudo, temos que ampliar
a maneira como, de um modo geral, o Romantismo é entendido. Para além de
pensá-lo como um movimento que procurou amores impossíveis, o bucolismo, a
singeleza campestre, queremos afirmar a faceta do Romantismo como um movimento
de crise e de crítica contra certa subjetividade, política, ética, estética ocidental
que vinham se desenhando à medida que o capitalismo se estruturava. O Romantismo
pode ser colocado como corrente que tem uma profunda crítica “ético-social ou
cultural direcionada ao capitalismo”, além de buscar uma saída das mazelas
sociais deste sistema através da “nostalgia das sociedades pré-capitalistas”. O
projeto Romântico, então, não deve ser ingenuamente visto apenas como novas formas
mais livres e expressivas de realizar obras de arte movidas pela emoção
intensa. Mas foi uma nova forma de entender o mundo e uma tentativa de dar novos
significados para a vida. O projeto Romântico não deve ser ingenuamente visto
apenas como novas formas mais livres e expressivas de realizar obras de arte
movidas pela emoção intensa. Mas foi uma nova forma de entender o mundo e uma
tentativa de dar novos significados para a vida, que atingiu diversos campos,
dentre eles a política, a economia, a filosofia, a medicina, a ciência e as
artes. Teorias constituídas no século XIX têm a forte influência dos ideais do
Romantismo, como o Marxismo e a Psicanálise, por exemplo. O mais interessante é
notar que há pensamentos românticos que até hoje se configuram no cotidiano, e
os naturalizamos como se fossem formas de funcionamento universais. Como já
mencionamos, a ideia de que a arte expressa um mundo interior é um clichê de
origem romântica. E será a partir de Rousseau, Whitman e Nietzsche que se desdobrarão,
aqui, as análises do Romantismo e suas influências para pensar a arte da dança
e o corpo.
O que mais nos interessa
aqui é o Nietzsche jovem, o Nietzsche de O nascimento da tragédia (2003),
onde apresenta um conhecimento aprofundado sobre a Grécia. Mas a Grécia
nietzscheana não é apenas a Grécia das belas formas e das proporções perfeitas,
presentes nas obras de arte que Aristóteles já havia analisando em sua poética,
e que tinha em Apolo o ordenador dessas formas divinas. Nietzsche quer buscar
na Grécia um outro princípio, segundo ele há muito esquecido; para tanto introduz
Dioniso para o entendimento pleno das tragédias gregas. É através do
ressurgimento de Dioniso e do seu coro, juntamente com Apolo, que uma nova
perspectiva de arte surgirá, tirando-a daquele patamar inferior onde segundo
Nietzsche, se encontrava. Duncan não fará referência direta a esta obra, mas
seu projeto de dança está intimamente ligado a um resgate de Dioniso e do coro
grego, necessário para o restabelecimento da autêntica dança. Diversos trechos
de seu livro e outros textos corroboram essa idéia. Mas por que este sonho do
renascimento grego foi tão inspirador? Voltemos ao entendimento do movimento
romântico para responder esta questão. O Romantismo foi um movimento artístico,
filosófico e cultural que se expandiu por toda a Europa e foi além-mar, chegando
às Américas e a outros continentes. Contudo, a cultura alemã foi uma das
grandes responsáveis pelos principais ideais românticos. Os alemães são os
primeiros a usar a palavra romântica, ligando este termo inicialmente aos
pensamentos e poéticas de Goethe, Schiller, Schelling e outros. Uma das teses
sobre o Romantismo o visualiza como uma tentativa da cultura germânica se
legitimar perante a cultura latina. A Alemanha no século XIX apresentava uma
profunda desigualdade econômica e cultural com relação aos países do
Mediterrâneo, principalmente Itália e França. E havia um conflito entre a cultura
latina (o humanismo renascentista) e a cultura alemã (o protestantismo nórdico).
Essa cisão do antigo e unificado mundo medieval indica que o Renascimento
germânico não se processou no mesmo tempo nem da mesma forma. A reforma adiou [o Renascimento
germânico] ao século XVIII. A forte influência protestante, além de fatores
econômicos e políticos como a Guerra dos Trinta Anos, a dificuldade de
centralização e controle do governo devido a grandes diversidades sociais e
geográficas produziu na Alemanha no século XVII um sentimento de inferioridade
em relação aos latinos. Tanto a burguesia como a aristocracia germânicas tinham
condição econômica inferior à dos seus vizinhos franceses. Por isso estas duas
classes na Alemanha se empenharam em uma aliança para um projeto de valorização
da própria cultura germânica.
Se a cultura renascentista
latina buscava na razão, na poética aristotélica, na ciência, a base de sua
cultura, o protestantismo dava à Alemanha o desejo de experiências
sobrenaturais: a fé revela através de segredos internos, que se contrapõem aos
conhecimentos de um cristianismo latino que se racionalizava. Tentando superar
este sentimento de inferioridade, a Alemanha inicia, principalmente a partir do
século XVII, um projeto de valorização de sua cultural. Temos como figura
principal, iniciador deste projeto Winckelmann. Se de algum modo o Mediterrâneo
era o modelo a ser seguido pelo resto da Europa, devido a sua tradição ter se
fixado nos antigos modelos gregos, Winckelmann toma outro rumo. A partir de
então os latinos, principalmente franceses e italianos, são acusados de que
eles não conseguiram verdadeiramente, no Renascimento, retornar a uma Grécia
original, exemplo de modelo máximo da cultura. A tese de Winckelmann é que para
retornar aos gregos não deveríamos ter como modelo a cultura romana como
fizeram os latinos, mas ir verdadeiramente nos gregos autênticos. Pois os
romanos nada mais são do que copiadores.
Como vimos, a forma de
reação ao capitalismo comum no Romantismo é visualizar que algo mais original e
intenso foi esquecido, recalcado ou adormecido, e é preciso se ligar novamente
a este fator vital. Para Nietzsche, o princípio dionisíaco foi esquecido e na
arte temos o seu resgate. Em Freud há as idéias de desejos recalcados que devem
ser descobertos e incorporados ao eu. Para Rousseau, os povos primitivos representam
esta esperança; para os poetas românticos, as sociedades pré-capitalistas. Uma revolução,
uma mudança de sentido é esperada, seja para um retorno a um mundo distante ou antigo,
seja para a criação de uma nova sociedade, como deseja Marx. É claro que a
noção de corpo natural, apresentado pelos românticos e por Isadora, já traz
necessariamente, como um opositor, a noção de corpo artificial que, pelos
pensamentos do Romantismo, pode significar um corpo alienado, mecanizado, aprisionado.
O termo artificial, nesta vertente, ganha uma dimensão deletéria para o corpo. O
uso alienado, mecanizado do corpo, se o artificializa (lhe rouba da natureza),
por outro lado, podemos entender o corpo em arte como a transformação da
própria natureza, a desidealização dela: o artificial num sentido positivo. No
sentido de ficcional, inventivo. Há uma premissa básica que vimos nos
românticos, que é a capacidade criadora da natureza, como Duncan tão bem nos
mostrou. Mas, ao pensar o absoluto na natureza, a força criadora é enfraquecida,
pois aquilo que avaliamos como artificial decorre de uma prática judicativa e hierárquica.
Acreditamos que a introdução do termo artificial e a eliminação da lógica
opositora entre estes termos podem ser necessárias para intensificar a criação.
Isso acontecerá com os russos.
Afirmamos anteriormente
que a dança acadêmica não conseguiu penetrar como categoria de arte no
Ocidente. Na França, é claro, ao lado da Itália, o balé havia conquistado grande
repercussão e desenvolvimento técnico. A origem do balé é italiana, mas na
corte de Luis XIV e com os balés românticos “La Sylphide” e “Giselle” a
dança se aproxima de uma categoria de arte, mas, em nossa visão, isto não foi
suficiente para romper as barreiras hierárquicas do campo das artes. E, mesmo
chegando a ganhar prestígio na França, ocorreu um grande declínio desta forma
de espetáculo no final do século XIX. Para dar uma rápida idéia desta
decadência do balé francês, quando “Coppélia” foi estreado, em 1870, não havia
mais homens dançando. Os papéis masculinos eram feitos apenas por bailarinas, e
Franz, o protagonista principal, foi apresentado por Eugenia Fiocre. Mesmo,
contando com Léo Delibes, um compositor com certo prestígio na história da
música devido à sua ópera “Lakemé”, o balé declinava em qualidade. Os
cenários eram de papelão, a formação das bailarinas não tinha mais alta
qualidade.
Em contrapartida, na
Rússia, o balé ainda permanecia sob a tutela da aristocracia russa, e tinha se
tornado uma das manifestações do poder dos Czares, à moda de Luis XIV. O balé imperial
russo conservava certo prestígio, e principalmente um excelente nível técnico.
Desde o século XVIII, a Rússia, com seu desejo de se afrancesar, importara
muitos mestres franceses e italianos de balé para o teatro imperial, e em 1735
já havia uma escola estadual de dança (CANTON, 1994). Uma certa preocupação
pedagógica levou os russos a sistematizarem mais tarde as formas básicas do
ensino desta técnica corporal. E um outro importante elemento de análise é que
na Escola Imperial de Bailados do Teatro Marinsky, cada vez mais, os homens ganhavam
destaque, isto levando também à estruturação de uma técnica e passos
específicos e altamente desenvolvidos para o naipe masculino. A questão do
gênero aqui é fundamental para entender o reconhecimento da dança, pois, numa
sociedade falocrática, os papéis ocupados pelos homens se tornam vitais para o
prestígio de determinada atividade. Se na Rússia a consagração do bailarino
elevava a própria condição do balé, na França a extinção dos bailarinos era um
dos elementos que fazia o balé remar na contramão de sua valorização.
Muitas pistas nos levam a
crer que talvez na Rússia, principalmente em São Petersburgo, a
situação da dança tinha características bem singulares e diferentes das apresentadas
na França. Neste país, o poder tomado pela burguesia a partir da Revolução Francesa
faz com que esta forma de espetáculo se torne privado, na Ópera de Paris, e não
mais tutelada pela aristocracia. Sabe-se que, de certa forma, eram os
cavalheiros que financiavam os espetáculos, e também mantinham relações
amorosas com suas bailarinas protegidas. “‘A exibição de pernas’ do balé atraía
homens ricos, que adoçavam os olhos e se apaixonavam pelas belas bailarinas,
resistindo aos castigos do desprezo e suplicando as recompensas da intimidade.
Na Escola Imperial de
Dança do Teatro Mariinski, em São Petersburgo, grandes mestres, como o francês
Marius Petipa (1818-1910) e o italiano Enrico Cecchetti (1850-1928),
encontraram um campo fértil para seus ensinamentos. A união do estilo nobre francês ao
forte virtuosismo italiano deu origem ao método russo, mais vital e adequado
ao temperamento e ao físico dos bailarinos russos. Na década de 1890,
Petipa montou três grandes balés sob a partitura de Piotr Ilyich Tchaikowsky
(1840-1893), que são remontados e apresentados até hoje: A Bela Adormecida no Bosque (1890); O Quebra-Nozes (1892) e O
Lago dos Cisnes (1895).
Notamos então que as
questões de gênero e corpo são bastante interligadas. As artes do corpo,
principalmente após a Revolução Francesa, se tornam, em alguns países, uma
espécie de espetáculo degradado da elite burguesa (HANNA, 1999). Com o
desprestígio do balé, os homens saem de cena e o universo feminino fica livre
para as bailarinas atuarem. Se há uma história da atividade humana repleta de
nomes femininos, e legitimada de forma menor, esta é a história da dança.
Porém, como Bourdieu (2005) nos fala, a dominação masculina sobre a mulher
transforma o corpo do sexo frágil em um objeto de prazer; assim, a dança,
atividade que se tornara surpreendentemente feminina na Europa ocidental, torna-se
uma espécie de local dos prazeres sofisticados da carne. Assim, uma outra
questão a ser mencionada é que, se Duncan, nos EUA, procuraria utilizar-se dos
grandes clássicos da música para elevar o nível de suas coreografias, tentando
fazer da dança uma arte legítima, os russos já haviam de certa forma retirado a
“tradição” dos compositores de segunda classe de seus balés, pois há muito
Tchaikovsky era um mestre de partituras para os balés do Teatro Marinsky. A
música de Tchaikovsky, e também de Glazunov, em grande parte são conhecidas por
seus balés, como “O lago dos cisnes”, “A bela adormecida”, “O quebra-nozes” e
“Raymonda”, entre outros.
Retornando à temática da
dança, reafirmamos que o balé tem sua origem e desenvolvimento na Itália e
França, mas é somente em sua configuração russa que este espetáculo é elevado à
categoria de arte. Nijinsky inicia sua carreira nesta esfera quase artística da
dança, numa transição entre um tardio romantismo russo e a vanguarda artística
européia. Desde cedo Nijinsky era aclamado como bailarino do Teatro Imperial,
mas sua fama e a do próprio balé russo se ocidentalizam e se notabilizam
através da companhia privada dos Balés Russos de Diaghilev. Este empresário das
artes russas é considerado um dos nomes mais importantes quando se fala em
revolução na dança. Graças a ele, uma série de pintores, músicos e bailarinos,
todos de vanguarda, foram apresentados e aclamados na Europa. Diaghilev havia estudado
música, entretanto, fora desencorajado pelo próprio Riminsky-Korsakov a seguir
a vida de compositor, resolvendo então ingressar nas artes como empresário. De
todas as suas façanhas neste ramo, entre organizações de exposições de arte
russa dentro e fora deste país, óperas e edições de arte, a criação de seus
balés foi a grande invenção européia do início do século XX, “estourando” de
forma colossal desde sua primeira apresentação fora da Rússia. Agora, em vez de
confeccionados em papelão, nos balés de Diaghilev os cenários eram produzidos
por renomados artistas plásticos. O nível técnico dos bailarinos contava com um
grupo de russos de primeira linha, produzidos pela Escola Imperial. Enquanto os
franceses só apreciavam, em seus balés as frágeis bailarinas, agora homens e
mulheres tinham papeis fundamentais numa técnica cheia de virtuosismo e poética
como jamais se imaginara. Diaghilev tentou fazer do balé uma verdadeira gesamtkunstwerk,
isto é, uma arte total, uma comunhão entre os artistas. Assim, bailarinos
como Nijinsky, Ana Pavlova, Tamara Karasavia, Ida Rubstain dançavam com
figurinos e cenários feitos por seus compatriotas, como Nicholas Roerich,
Benois, Baskt, ao som das músicas dos melhores compositores russos, como Riminsky-Korsakov,
Stravinsky, Borodin. Os Balés Russos eletrizaram Paris porque eram superiores
ao balé francês. Agora a dança está agregada a verdadeiros artistas plásticos e
músicos, afastando-se da mediocridade com que os bailarinos franceses
realizavam este espetáculo. Mas, além deste elevado nível técnico e artístico,
do nacionalismo e de um romantismo tardio, o exotismo foi talvez uma arma
importantíssima nos bailados russos. Ainda pouco conhecida na Europa, a arte
russa precisava atravessar as barreiras ocidentais. Ora, desde o século XIX
poetas e escritores europeus viam nas terras ao oeste um lugar de inspiração
para suas obras, o que gerou até o início do século XX um culto ao orientalismo
(SAID, 1996). E a proximidade da Rússia com Oriente trouxe o fascínio de terras
distantes nas apresentações de “Shérérazarde”, “Cleópatra”, “Danças
Polovitsianas do Príncipe Igor”, “Petrouska” mostraram aquilo que os franceses
desejavam ver: inovação, sensualidade e orientalismo. O mais original de
Nijinsky é que nele não podemos apontar um pensamento, princípios ou
método tão claro sobre dança. Hoje, o que se conhece de Nijinsky é sua capacidade
altamente revolucionária revelada em cada coreografia. Há um corpo inédito,
novo, em cada coreografia, que nos faz pensar em princípios e métodos
diferentes. Em cada coreografia um método novo se estabelecia, produzindo uma
nova dimensão corporal e existencial. Será então este o caminho da
corporeidade? Compreender que em cada método, em cada técnica, em cada fazer de
que o corpo toma posse, ele faz a si mesmo uma espécie de autogênese, de autopoiesis?